21/04/16

Amarante Literatura - Carta de Fernando Pessoa ao Poeta de Amarante, Gatão, Teixeira de Pascoaes, quando uma epistola era quase uma obra de arte!



«A propósito da morte de meu irmão e de meu Pai, Fernando Pessoa escreveu a Pascoaes uma carta muito bonita, datada de 5 de Janeiro de 1914:


"Meu querido camarada

Há dias, num dos atalhos de uma conversa com Mário Beirão, soube que, já depois da perda de seu sobrinho, sofrera o meu querido Amigo a de seu cunhado. Talvez porque quase nunca leio jornais e porque vivo, sem necessidade de atenção a sensações exteriores, dedicado sem querer a presenciar-me apenas a mim-próprio, essa notícia só assim me chegou. Não sendo assim, já antes lhe haveria escrito para lhe manifestar o quanto a alta e quase religiosa simpatia, que me liga fraternalmente ao seu grande Espírito, faz com que me comova com a sua dor, redobrada agora. Eu creio que o meu Amigo tomará esta carta no sentido da sinceridade que ela tem e não olhará ao seu aspecto de condolência banal, que estas, por sinceras que sejam, inevitavelmente vestem. Os pêsames que esta carta lhe leva vem do mais alto que o social de mim.

Já que me encontro escrevendo-lhe, aproveito-o para lhe pedir desculpa de antes lhe não ter escrito, agradecendo a oferta de «O Doido e a Morte». Logo após receber este poema, comecei uma carta para si, em que cuidadosamente delineava, isto é, começava a delinear – o que para mim se afigurava ser, literáriamente, o valor da sua alma. Circunstâncias exteriores, mínimas salvo na sua repercussão em mim, deixaram-me, há mais que alguns meses, sempre sem acrescentar uma linha às poucas linhas que pensava. Adiei indefinidamente essa carta, que, ainda escrevi, e conto um dia poder terminar e expedir. Perdoe-me o que de indelicado e moroso resultou, perante a delicadeza da sua pronta oferta, do meu constante e desanimador desalento. Nenhuma culpa teve nessa demora o que de mim é consciente e superior a mim-próprio, e é com essa parte da minha alma que admiro e me enterneço com a sua obra. Não que eu julgue «O Doido e a Morte» uma das suas obras melhores. Mas tem, como tudo quanto o meu Amigo escreve, um sabor espiritual e Eterno. Naquelas figuras álgidas, onde o Mistério esfriou em Medalha, tendo de um lado a loucura e do outro a Morte, Deus é presente na sua nocturna forma de Pavor e Silêncio. A sombra de uma esfinge ao luar – eis o que é para mim esse poema. Bem sei que isto é pouco lúcido, mas o meu espírito bambo e desfiado e não suporta já o peso de um raciocínio ou de uma analogia. Digo-lhe tudo por imagens e metáforas, e estas são a moeda falsa da inteligência.

Tenho seguido com atenção o que o meu Amigo tem escrito. Há páginas das «Elegias» em que a Dor é quase divina. E há períodos do «Verbo Escuro» que são estatuetas do Mistério, encontradas em túmulos de réis que num impossível falaram talvez com Deus.

Releve-me que me aproveite de lhe estar escrevendo sobre outro e tão diverso assunto para enfim lhe agradecer «O Doido e a Morte», e lhe falar do que tem escrito. Se não lhe falasse disso agora, quem sabe quando lho diria? Passo a vida a adiar tudo – e para quando?

Ao menos ganho com isso o ser simbólico. O que é cada um de nós, na sua essência absoluta e divina, senão uma perfeição adiada para Deus?

Abraça-o comovidamente o seu sincero Amigo e eterno admirador.”


Fernando Pessoa, 5 de Janeiro de 1914» in Fotobiografia "Na Sombra de Pascoaes" de Maria José Teixeira de Vasconcelos

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