«A propósito da morte de meu irmão e de meu Pai, Fernando Pessoa escreveu a Pascoaes uma carta muito bonita, datada de 5 de Janeiro de 1914:
"Meu querido camarada
Há dias, num dos atalhos de uma
conversa com Mário Beirão, soube que, já depois da perda de seu sobrinho,
sofrera o meu querido Amigo a de seu cunhado. Talvez porque quase nunca leio
jornais e porque vivo, sem necessidade de atenção a sensações exteriores,
dedicado sem querer a presenciar-me apenas a mim-próprio, essa notícia só assim
me chegou. Não sendo assim, já antes lhe haveria escrito para lhe manifestar o
quanto a alta e quase religiosa simpatia, que me liga fraternalmente ao seu
grande Espírito, faz com que me comova com a sua dor, redobrada agora. Eu creio
que o meu Amigo tomará esta carta no sentido da sinceridade que ela tem e não
olhará ao seu aspecto de condolência banal, que estas, por sinceras que sejam,
inevitavelmente vestem. Os pêsames que esta carta lhe leva vem do mais alto que
o social de mim.
Já que me encontro
escrevendo-lhe, aproveito-o para lhe pedir desculpa de antes lhe não ter
escrito, agradecendo a oferta de «O Doido e a Morte». Logo após receber este
poema, comecei uma carta para si, em que cuidadosamente delineava, isto é,
começava a delinear – o que para mim se afigurava ser, literáriamente, o valor
da sua alma. Circunstâncias exteriores, mínimas salvo na sua repercussão em
mim, deixaram-me, há mais que alguns meses, sempre sem acrescentar uma linha às
poucas linhas que pensava. Adiei indefinidamente essa carta, que, ainda
escrevi, e conto um dia poder terminar e expedir. Perdoe-me o que de indelicado
e moroso resultou, perante a delicadeza da sua pronta oferta, do meu constante
e desanimador desalento. Nenhuma culpa teve nessa demora o que de mim é
consciente e superior a mim-próprio, e é com essa parte da minha alma que
admiro e me enterneço com a sua obra. Não que eu julgue «O Doido e a Morte» uma
das suas obras melhores. Mas tem, como tudo quanto o meu Amigo escreve, um
sabor espiritual e Eterno. Naquelas figuras álgidas, onde o Mistério esfriou em
Medalha, tendo de um lado a loucura e do outro a Morte, Deus é presente na sua
nocturna forma de Pavor e Silêncio. A sombra de uma esfinge ao luar – eis o que
é para mim esse poema. Bem sei que isto é pouco lúcido, mas o meu espírito
bambo e desfiado e não suporta já o peso de um raciocínio ou de uma analogia.
Digo-lhe tudo por imagens e metáforas, e estas são a moeda falsa da
inteligência.
Tenho seguido com atenção o que o
meu Amigo tem escrito. Há páginas das «Elegias» em que a Dor é quase divina. E
há períodos do «Verbo Escuro» que são estatuetas do Mistério, encontradas em
túmulos de réis que num impossível falaram talvez com Deus.
Releve-me que me aproveite de lhe
estar escrevendo sobre outro e tão diverso assunto para enfim lhe agradecer «O
Doido e a Morte», e lhe falar do que tem escrito. Se não lhe falasse disso
agora, quem sabe quando lho diria? Passo a vida a adiar tudo – e para quando?
Ao menos ganho com isso o ser
simbólico. O que é cada um de nós, na sua essência absoluta e divina, senão uma
perfeição adiada para Deus?
Abraça-o comovidamente o seu
sincero Amigo e eterno admirador.”
Fernando Pessoa, 5 de Janeiro de 1914» in Fotobiografia "Na Sombra de Pascoaes" de Maria José Teixeira de Vasconcelos
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