«O bolo-rei nasceu aqui
A massa, o dono do segredo, uma rádio com más notícias, cinco toneladas de bolo, 17 pessoas a encher três fornos que não se vão desligar até à tarde de dia 24. Uma madrugada na fábrica da Confeitaria Nacional, onde se segue a receita há 150 anos.
Não há cereja no topo deste bolo. Há figo, laranja, abóbora e um segredo sem cofre-forte mas que se mantém intocável há mais de cem anos. Guarda-se apenas na memória de três pessoas. O patrão, o filho do patrão e o pasteleiro Aníbal. Só o último o amassa. Homem de poucas falas, o guardião do enigma está na Confeitaria Nacional desde os 16 anos. Ora isso dá... "parece que 38". Não lhe façam perguntas difíceis numa altura em que já perdeu a conta aos ovos e aos quilos de farinha que amassou nos últimos dias. Trezentos ovos para cada massa, dá qualquer coisa como 150 bolos-rei. Quase nada na contabilidade de uma semana que termina a 24, com cinco toneladas do bolo amassado sem fava nem brinde, mas com o segredo de Aníbal. E se Aníbal falta? Pode ser um problema, mas quase sempre tem solução. Basta deixar a "poção mágica" em frascos.
Passa pouco das sete da manhã em Campo de Ourique. Cheira a canela e a açúcar caramelizado. À porta do número 6 da rua Azedo Gneco, ainda de noite, sai a primeira entrega do primeiro dos dias de verdadeiro caos. ‘Croissants', ‘garibaldis', ‘duchese' e dezenas de tabuleiros de bolos-rei acabados de sair dos três fornos eléctricos que por estes dias não têm direito a pausa na cozedura. Desde a meia noite de 22 até às três, quatro da tarde de dia 24 a operação é ‘non-stop' na fábrica da Confeitaria Nacional. Há dois anos que deixou as velhinhas instalações na rua do Duque para satisfazer uma procura cada vez maior e mais exigente, a condizer com a reestruturação da pastelaria e casa de chá da Praça da Figueira.
Conta a lenda ou a história, que foi ali que nasceu o bolo-rei e de lá se propagou a todo o país, tornando-se o bolo oficial do Natal português. Baltazar Castanheiro Jr., o filho do fundador da Confeitaria Nacional era um viajante e, na década de sessenta do século passado, trouxe com ele de França um ‘chef' e uma receita. O original ainda existe, num papel gasto pelo tempo, escrito numa caligrafia certa mas sumida. É seguida hoje, como antes. Nem uma alteração e, ao vê-la, nada do segredo é revelado.
O contra-relógio
Alex não tem ideia desse segredo diluído na massa que corta e pesa. 750 gramas, um quilo, um quilo e meio. Tem um lugar central na sala onde se amassa e estende o bolo. O rigor e a atenção que coloca em cada gesto em nada indicia que os repete há oito horas. Não sabe quantas mais vai estar de pé, num trabalho duro, que exige músculo. Além da precisão da balança, é ele quem despeja as amassadeiras, carregando quilos de massa para dentro de depósitos que mais tarde vai ter de despejar para cima da mesa onde trabalha. Cada um tem 45, 50 quilos de massa. Não se queixa. Sabe que há-de ir descansar cinco horas no apartamento que a Confeitaria tem mesmo por cima da fábrica. É tudo a que cada um tem direito, por turnos, durante estes dias.
Na fábrica, o tempo corre em função das encomendas e não dos ponteiros do relógio enfarinhado, por cima de um rádio de onde sai uma música mil vezes tocada em cada Natal. "Gosto de bolo-rei", diz Alex, carregando nos ‘rr', "mas não é muito diferente do bolo da minha terra", um sorriso e continua a pesagem da massa que segue para tender, depois repousar, ser novamente moldada, passada com clara de ovo, enfeitada com pedaços grandes de fruta confitada e não cristalizada. O processo e o fornecedor são os mesmos de sempre. "Aqui não há corantes", informa Benedita Salema, a "toda-poderosa" da fábrica que se quer expandir e modernizar.
Este é o seu primeiro ano de bolo-rei. Veio da hotelaria e está ali há apenas dois meses. Atende telefones, toma decisões, prova os frutos secos, pergunta se não estarão a calcar demais os bolos. Conhece cada um dos 60 funcionários da casa, dez dos quais, pasteleiros a tempo inteiro na fábrica. Em tempo de Natal, sobem para 17 e sobem também os encontrões num espaço que não consegue nunca responder a todas as encomendas. "Não sentimos a crise. Não há variação entre este ano e os anos anteriores porque trabalhamos sempre na nossa capacidade máxima. Temos de rejeitar muitos pedidos", esclarece ainda Benedita.
E o rádio toca agora uma canção velhinha de Brian Adams mas ninguém parece ouvir. Pergunta-se pelo ‘chantilly' para as receitas de sempre, até no Natal. Paulo vê se há uma fornada pronta a abrir. Quanto tempo? "Vê-se pela cor". Acede a ser mais preciso. Quem não tem mão nem olho para estas coisas, que conte 40 minutos.
Conte ainda que entre abrir o primeiro pacote de margarina e sair um bolo pincelado com geleia pronto para entrar na caixa passam seis horas. Há quem se lembre de fazer café. Quem diz que não? E a rádio informa que o Governo quer cortar os três dias e férias de bónus. Em vez dos 25 passa-se aos antigos 22 dias. Nem um ai, e nem um olhar a desviar-se da tarefa.
E o café que não vem e a pausa para o cigarro numa descompressão de risos e músculos e ar e luz do dia. Alex pede ajuda ao rapaz de luvas brancas que decora um bolo com chocolate. Os dois fazem caretas ao levantar do chão mais uns 50 quilos de massa. Aníbal já não pode. Arranjou duas hérnias com aquilo. Aquilo que só prova no Natal e no Ano Novo. Uma fatia basta. "Só para cumprir a tradição". E o que acha dos bolos dos outros? "Experimentei alguns, mas não gostei. Já não experimento mais".
E a rádio continua a tocar relíquias. "I should have known better...", canta uma voz que ficou perdida nos anos oitenta, e o pasteleiro que não tem nada a ver com o bolo-rei desenha linhas de ‘chantilly' num bolo de ananás. São nove da manhã, há nove horas que se trabalha e ainda só é dia 22. Nunca mais chega o Natal.» in http://economico.sapo.pt/noticias/o-bolorei-nasceu-aqui_134409.html
Reportagem - "Bolo Rei" - (Praça da Alegria)