15/04/16

Amarante Literatura - Maria José Teixeira de Vasconcelos, sobrinha e afilhada de Teixeira de Pascoaes, na fotobiografia "Na sombra de Pascoaes", interpela-nos com uma cena da ligação instintiva do Poeta à Natureza, que para Ele era da ordem do Divino...




«Amarante, Gatão, Casa de Pascoaes, corria o ano de 1923.

Foi por esta altura que presenciei uma cena espantosa no jardim da Casa de Pascoaes:

No canteiro do meio, que nesse tempo tinha uma enorme palmeira ao centro, uma cobra, imóvel, de busto erguido, a cabeça estendida, sibilava misteriosamente. Numa haste de roseira anã, um passarinho piava num tom de grande aflição.

Depois desceu para o chão orvalhado. Pouco a pouco foi-se aproximando, em pequeninos saltos hesitantes, piando queixumes, do réptil imóvel - surpreendentemente imóvel.

Num momento, o destino cumpriu-se. E foi o passarito quem voluntariamente se entregou à morte, dominado por estranha, oculta magia. Entrou, impassível, nas entranhas da cobra fascinante.

Uma cena de perfeita sedução.

De súbito, o Poeta acordou da sua estática contemplação. Num instante, uma pedra enorme paralisou a cabeça do réptil. Seu corpo contorcia-se desesperadamente. Mais pedras vieram distenderem-lhe o corpo estreito, prendendo-o à terra.

Pascoaes abriu um canivete, rasgou o ventre convulso da cobra imobilizada, no lugar em que uma bolsa flácida e palpitante em louca ânsia de vida denunciava a presença da ave aprisionada.

E o milagre aconteceu. 

Pascoaes depôs no chão o pássaro, liberto, que, estonteado, doidejou no solo alguns instantes, tombou, retomou o equilíbrio e... depois ergueu o seu voo de liberdade e altura. 

No chão, a cobra ainda estrebuchava.

A expressão do Poeta era radiosa.» in fotobiografia "Na sombra de Pascoaes" de Maria José Teixeira de Vasconcelos.


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