«Amarante, Gatão, Casa de Pascoaes, corria o ano de 1923.
Foi por esta altura que presenciei uma cena espantosa no jardim da Casa de Pascoaes:
No canteiro do meio, que nesse tempo tinha uma enorme palmeira ao centro, uma cobra, imóvel, de busto erguido, a cabeça estendida, sibilava misteriosamente. Numa haste de roseira anã, um passarinho piava num tom de grande aflição.
Depois desceu para o chão orvalhado. Pouco a pouco foi-se aproximando, em pequeninos saltos hesitantes, piando queixumes, do réptil imóvel - surpreendentemente imóvel.
Num momento, o destino cumpriu-se. E foi o passarito quem voluntariamente se entregou à morte, dominado por estranha, oculta magia. Entrou, impassível, nas entranhas da cobra fascinante.
Uma cena de perfeita sedução.
De súbito, o Poeta acordou da sua estática contemplação. Num instante, uma pedra enorme paralisou a cabeça do réptil. Seu corpo contorcia-se desesperadamente. Mais pedras vieram distenderem-lhe o corpo estreito, prendendo-o à terra.
Pascoaes abriu um canivete, rasgou o ventre convulso da cobra imobilizada, no lugar em que uma bolsa flácida e palpitante em louca ânsia de vida denunciava a presença da ave aprisionada.
E o milagre aconteceu.
Pascoaes depôs no chão o pássaro, liberto, que, estonteado, doidejou no solo alguns instantes, tombou, retomou o equilíbrio e... depois ergueu o seu voo de liberdade e altura.
No chão, a cobra ainda estrebuchava.
A expressão do Poeta era radiosa.» in fotobiografia "Na sombra de Pascoaes" de Maria José Teixeira de Vasconcelos.
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