«O milionário mundo do jogo online
Desgraça vidas, mas também enriquece jovens ainda na casa dos 30 anos. Engorda operadores instalados em offshores e emagrece os casinos tradicionais. O Governo, esse, prepara-se para taxar um universo virtual que já fatura, em Portugal, mais de 40 milhões de euros - até ver, ilegalmente.
Em pouco menos de 24 meses, Paulo derreteu salários em slot-machines, apostas desportivas, póquer, "o que calhava". A conta-poupança da filha e o casamento ficaram estorricados na roleta. Lembra-se bem porque, naquele dia 24 de setembro de 2010, estava capaz de jurar que saía o par. A sorte parecia estar do seu lado e até saíram dois pares. "Um saiu no jogo, o outro saiu de casa." Absorvido pelo vício, nem deu pela falta da filha, de 2 anos, e da mulher, que se fartou das suas ausências, mesmo quando Paulo estava de corpo presente. Instalado numa confortável cadeira, já moldada aos seus cinquenta e poucos quilos, só a custo se levantava "para ir à casa de banho, comer qualquer coisa ou dormir". Com uma carta de despedida nas mãos, Paulo, agora com 29 anos, ficou entregue à sua falta de sorte. Hoje, afastado do jogo "por conta própria", ainda procura refazer a vida e reconquistar o que de importante perdeu naquela noite. "Não está fácil, mas vou conseguir."
De comum com o caso de Paulo, o de Henrique Pinho só tem as longas horas passadas em frente do computador. Licenciado em Gestão, aos 25 anos largou o emprego no departamento de marketing de uma empresa de laticínios, para se tornar num jogador de póquer profissional. O que começara por ser um hóbi dos tempos da faculdade já dava lucro e ultrapassava, com frequência, o ordenado auferido na empresa. Henrique fez contas e convenceu os pais e a namorada. "Os gráficos indicavam que o meu rendimento era constante e eles acabaram por aceitar." Hoje, aos 31 anos, pai de um bebé de poucos meses, até possui o patrocínio da Pokerstars, a maior sala online do mundo da modalidade.
As histórias de Paulo e Henrique são duas faces de um jogo que o Governo se prepara para regulamentar em breve, a exemplo de outros parceiros comunitários, por imposição da Comissão Europeia. Em concreto, o Executivo quer arrecadar, já este ano, através da legalização dos operadores do jogo online e a instalação de escritórios seus em Portugal, entre 15 milhões de euros e 20 milhões de euros, em impostos.
Em contraciclo, o jogo online está em crescimento acelerado. De acordo com um relatório de 2011 da H2 Gambling Capital (H2GC), consultora internacional líder no fornecimento de estudos de mercado global para esta indústria, a receita bruta do jogo online, em 2010, foi de 24 mil milhões de euros. Para 2012, estima-se que as receitas ascendam a 28,6 mil milhões de euros. E Portugal acompanha o contraciclo. Segundo aquele documento, o crescimento médio do jogo online, no nosso país, foi de 78% ao ano. De 2003 a 2010, a receita bruta passou de 2,1 milhões de euros para 44,9 milhões de euros. E as previsões são de subida, pelo menos até 2015, quando se espera que os jogadores portugueses representem receitas de 122,6 milhões de euros.
Pressionado por Bruxelas para acabar com o monopólio estatal e preocupado com a proteção dos consumidores, o Governo prepara-se, então, para regulamentar esta atividade, ainda ilegal. Desde 2003 que a legislação portuguesa determina que o jogo online é um exclusivo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Nada, porém, que tenha impedido a profusão da atividade em Portugal, ainda que através de empresas e sites localizados além-fronteiras e fora da jurisdição nacional. Basta consultar a página do Casino City, um portal de referência na matéria. Em finais de maio último, estavam registados 423 sítios de jogo online em língua portuguesa, operados por 121 empresas estrangeiras espalhadas por 19 jurisdições diferentes - por norma, offshores.
CASINOS EM AFLIÇÃO
Parte interessada no fenómeno, a Associação Portuguesa de Casinos (APC) tem dificuldade em quantificar a fatia das perdas de receitas que cabem ao jogo online ilegal e as que se devem à conjuntura do País. O certo é que as faturações de todos os casinos nacionais têm descido de forma vertiginosa. Nos últimos três anos, a quebra foi de 61,9 milhões de euros em valor absoluto, passando de 387,7 milhões de euros, em 2008, para 325,8 milhões de euros em 2011. E 2012 promete ser ainda mais negro. Artur Mateus, presidente da APC, lamenta a demora na regulamentação do jogo online e recorda o exclusivo da exploração de jogos de fortuna e azar atribuído às concessionárias dos casinos existentes. "Em função desse exclusivo", diz, "foi estabelecida uma tributação altíssima às concessionárias que, entre contrapartidas iniciais e de exploração, atinge 62% das receitas brutas dos jogos dos quatro maiores casinos nacionais, responsáveis, em conjunto, por uma quota de mercado de 77 por cento." A dúvida é se estarão os casinos portugueses preparados para entrar no mercado, caso os jogos online venham a ser legalizados. Para Artur Mateus, a resposta é complicada, porque o espaço já foi ilegalmente ocupado por outros operadores. Mas as concessionárias dos casinos "continuam a acreditar nessa possibilidade".
Muito para lá dos números do negócio, a questão que preocupa alguns estudiosos do fenómeno, pais e psicólogos, é a quantidade crescente de jovens a jogar online. Henrique Lopes, responsável por boa parte dos estudos encomendados pela Misericórdia à Universidade Católica e especialista em gestão do jogo e epidemiologia da dependência, estima que haja mais de 60 mil jovens jogadores regulares, com um perfil bastante diferente do tradicional. "Nada têm a ver com a vida da noite e jogam muitas vezes em casa."
Foi essa a pista seguida por Rui Magalhães no seu estudo exploratório para a caracterização do consumo de jogo online. A tese de mestrado que defendeu no ISCTE analisou, especificamente, as populações de estudantes universitários de ciências tecnológicas e ciências sociais, e concluiu que 58,3% dos segundos têm comportamentos que indiciam problemas relacionados com o jogo online a dinheiro, em contraste com os 35,7% do outro segmento estudado. Questionados sobre a influência do jogo nos seus padrões de sono e alimentação, quase um terço dos inquiridos de ciências sociais admitiram perturbações, contra apenas 10% dos alunos de tecnológicas. Quanto às preferências dos 1 422 estudantes da amostra, a maioria destacou o póquer, as apostas desportivas e os jogos de casino.
VÍCIO OU CARREIRA?
A catalogação do póquer como adição é discutida por muitos dos jogadores. À exceção do tempo passado em frente do computador, Henrique Pinho garante que nada mais se assemelha aos jogos de casino. "Quem joga na roleta e noutros jogos de sorte", diz, "sabe que vai perder, mas tem sempre aquela ideia de que um dia pode haver uma bolada a bater à porta." No póquer, admite Henrique, também esse momento é esperado, "mas confiamos no estudo do jogo e dos adversários, e não na sorte ditada por uma máquina". Outra diferença substancial é que nem sempre lhe apetece jogar. "Faço-o, porque é o meu trabalho, não por vício."
As rotinas que estabeleceu não parecem encaixar no perfil-padrão de um dependente. Em parceria com um grupo de amigos, também eles jogadores de póquer, alugou um apartamento num condomínio fechado, em Matosinhos, com piscina interior. A renda é dividida e contempla já uma parte para a namorada de um deles, encarregada de ir às compras para rechear a despensa com bolachas, água e sumos, de que se alimentam quando estão concentrados no jogo. Espalhadas pela ampla sala encontram-se seis secretárias com computadores, cada qual com dois enormes monitores que lhes permitem jogar online em vários torneios, em simultâneo, auxiliados por programas de cálculo, com estatísticas sobre os adversários.
Enquanto gira incessantemente um par de grandes dados vermelhos na mão, "para ajudar a concentrar", Henrique garante já não jogar com a intensidade de outros tempos. A segurança do contrato com a Pokerstars deu-lhe um pouco mais de qualidade de vida e permite-lhe jogar menos. "Houve um mês em que joguei os 31 dias, a uma média de oito horas diárias; hoje, já não faço isso." E até há meses em que perde - "mas não é frequente". Enquanto fala, exemplifica com dez mesas de jogo espalhadas pelos monitores, apostando ou desistindo de cada mão de cartas a uma velocidade impressionante. "Agora, estou a jogar intensamente torneios, uma modalidade mais ingrata. Nas últimas nove sessões, só ganhei uma, ainda que isso tenha compensado as perdas das outras. Mas é assim: perdemos em nove dias e ganhamos num. A diferença é que as quantias são pequenas e as perdas também."
IDEAÇÃO SUICIDA
O psicólogo Pedro Hubert concede que os jogadores de póquer e de apostas desportivas sejam uma classe à parte. Mas o especialista em ludopatia alerta: esse conhecimento do jogo e a sensação de autocontrolo também podem fortalecer a dependência. No limite, elucida, "o melhor jogador possível de póquer seria um psicopata, um indivíduo de uma frieza incrível". E mesmo que, na maior parte, estes jogadores não sejam adictos, a fronteira pode revelar-se ténue. "Muitos mostram-se abusadores e, daí até se tornarem patológicos, pode ser um pequeno passo."
António deu-o. Aos 19 anos, já era visita assídua dos casinos da Póvoa e de Espinho. Em 2004, consciente da dependência em que se encontrava, solicitou a interdição de entrada em todas as salas de jogo. Foi sol de pouca dura. Cinco meses depois, já estava a jogar online. "Nessa altura, a vida transformou-se numa mentira", conta.
Deitava-se muitas vezes de carteira recheada, depois de ganhar nas apostas desportivas ou no póquer, mas não conseguia dormir. "A meio da noite, levantava-me e voltava para o computador. Só parava quando já estava outra vez sem dinheiro nenhum." Aos 37 anos, ainda a viver com os pais, António encontrou nos Jogadores Anónimos a ajuda que lhe faltou, nessas noites longas. Ou nos dias em que, obcecado em não deixar rasto de qualquer espécie, chegava a percorrer centenas de quilómetros para ir fazer um depósito a uma dependência bancária onde ninguém o conhecesse.
O comportamento de António encaixa na perfeição no padrão do jogador patológico: impulsivo, ansioso, deprimido, com perturbações de personalidade e distorções cognitivas.
Um cocktail muitas vezes explosivo e que pode levar a situações extremas, como o suicídio. O especialista Henrique Lopes estima mesmo que, entre os dependentes do jogo, o suicídio seja 3 000% mais elevado do que a média da população em geral. Baseado nos estudos que tem efetuado, Pedro Hubert apenas confirma que a ideação suicida dos jogadores offline seja de 30%, enquanto a dos players online estará nos 20 por cento.
Apesar disso, em Portugal, ao contrário do que sucede noutros países, como Inglaterra, EUA ou até Espanha, a dependência do jogo não é reconhecida como doença. Aliás, ao invés do que acontece com a esmagadora maioria dos países da União Europeia, Portugal não tem, sequer, qualquer plano de abordagem ao vício do jogo. Já com os impostos respetivos, fia mais fino.» in http://visao.sapo.pt/o-milionario-mundo-do-jogo-online=f676510#ixzz21Ik49uGU
(Vício do Jogo - Última Jogada)