24/12/16

Amarante Poesia - Como o Marânus de Teixeira de Pascoaes, foi invadido pela alegria do nascimento renovador e invocador da Lei de Deus, da sua Grandeza e a do Grande Marão personalizado, ou o Natal visto pelo Poeta de Gatão, Amarante, como Marânus.



"O Nascimento

Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha, 
Rompendo a sombra etérea do crepúsculo! 
A paisagem tornou-se mais estranha, 
Mais cheia de silêncio e de mistério! 
Dormem ainda as árvores e os homens, 
E dorme, em alto ramo, a cotovia… 
E, se ergue já seu canto, é porque sonha 
julga ver, sonhando, a luz do dia! 

E, pelos negros píncaros, a estrela 
É divino sorriso alumiante. 
Oh, que esplendor! Que formosura aquela! 
É lírio de oiro aberto! É rosa a arder! 

Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha, 
Tão virginal, tão nova, que parece 
Sair das mãos de Deus, a vez primeira! 

E como, sobre os montes, resplandece! 

Persegue-a o sol amado... No oriente, 
Alastra um nimbo anímico de luz. 
E a antiga dor das trevas, suavemente, 
Ondula, em transparência e palidez. 

Aí vem a estrela, alumiando a serra! 
E os olhos encantados dos pastores 
Voltam-se para a estrela... E cá na terra 
Há mágoas e penumbras, a fugir... 

Como ela voa, cintilando e rindo 
Aos penhascos agrestes e desnudos! 

E os pastores, atentos, vão seguindo 
A direcção etérea do seu voo... 

E a quimérica estrela deslumbrante 
Parou sobre a capela, onde a Saudade 
Agasalhava o Deus recém-nascido, 
Com seu manto de amor e claridade. 
E, amparando-o nos braços, lhe estendia 
Os seios maternais. A criancinha 
Mamava. E a Saudade lhe sorria, 
Num enlevo, num êxtase sagrado. 

A primavera, errante no Marão, 
Veio cobrir de lírios e de rosas 
O berço do Menino. E veio o outono, 
E vieram ermas sombras dolorosas. 
Logo, o outono rezou a sua prece 

De cinzas e de bruma. E o lindo sol, 
Entrando pelos vidros, aparece, 
Junto ao pequeno berço. E toda a luz 
Do céu veio com ele! E veio a noite. 
Vieram as avezinhas, que deixaram, 
No recôndito ninho, abandonados, 
Os filhos ainda implumes. E cantaram 
Em louvor do Menino e da Saudade. 

E Marânus sentia, mais alegre, 
Tornar-se vida, amor, fecundidade, 
A sua antiga e mística tristeza. 

E, ao ver a própria alma da sua raça 
Criar a Virgem Mãe dum novo Deus, 
Eis que à flor dos seus lábios esvoaça 
O sorriso supremo da vitória. 

E a Saudade, num casto e luminoso 
Gesto de amor, tomando, novamente, 
O Menino nos braços, o embalava. 
E sobre ele inclinava docemente 
A fronte aureolada. E uma canção, 
Que era feita de todas as cantigas, 
Mais num murmúrio brando de oração 

Que em voz alta, cantava. E o Deus menino, 
Com os olhos abertos, num espanto, 
Recebia do mundo a clara imagem 
E o seu nubloso e misterioso encanto... 

Também o bom pastor, a quem Marânus 
Havia prometido o Nascimento, 
Sentia em seu espírito surgir, 
Envolto num astral deslumbramento, 
Estranho e novo ser, que dissipava 
O seu velho crepúsculo interior, 
Onde um fantasma, trágico e nocturno, 
Aparição do medo e do terror, 
Furibundo, reinava, desde os séculos! 

O Menino crescia, como a aurora 
Que, sendo esparso vulto de mulher, 
Na linha do horizonte, que descora, 
Lembra a auréola dum Deus anunciado… 

Em volta dele, as coisas se animavam 
Dum sentido mais belo e verdadeiro; 
E a sua alma oculta desvendavam, 
Como na luz primeira da Existência. 

Mundo transfigurado! Ó terra santa! 
Ó terra já divina e toda erguida 
Àquela altura ideal da Eternidade, 
Mais uma vez, a morte foi vencida! 

Alguns dias passaram. E Marânus 
Disse que ia partir à sua Esposa, 
E que se entregava ao casto amor, tão puro, 
Desta leal paisagem montanhosa. 
E, chorando, abraçava-a, e repetia 
Que tinha de partir; mas, dentro em pouco, 
Por uma clara noite, voltaria. 

E a trágica Saudade, sufocada: 

«Eu bem conheço a voz que te chamou! 
Voz que ilumina as árvores e as nuvens, 
E que meu ser antigo transformou 
Neste meu ser anímico e perfeito.» 

E, mais serena e resignada: «Vai! 
Cumpre a sua vontade. É teu destino...» 

E beijando-o nos lábios, e tomando 
Em seus braços de imagem o Menino, 
Subiu a um alto píncaro escarpado, 
De onde ela, por mais tempo, contemplasse 
O esposo e companheiro bem amado. 

E, sozinha, de pé, sobre um rochedo, 
Disse-lhe um longo adeus. 
E, já distante, 
Marânus, ansioso, para trás 
Volvia a face triste, a cada instante. 
E parava, cismando… 
Mas, ao longe, 

O corpo da Saudade, vago e incerto, 
Perdia-se, no ar que se turbava... 

Anoitecia. A serra era um deserto. 
E Marânus seguia o seu caminho." 

Teixeira de Pascoaes, in 'Antologia Poética' 

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