«O padroeiro
O caso conta-se em poucas palavras. Devia ter-se passado, se não erra a lenda, no princípio do mundo, que o mundo começou para o povo logo após a morte de Cristo.
Vamos à lenda. Ali, a alguns quilómetros de Amarante, sobranceira ao Tâmega e de costas voltadas ao sol, fica Rebordelo - o palco dêste drama lendário.
Erguida a capela e benzido o altar, é eleito o padroeiro - S. Pedro.
Ninguém, melhor que este pecador, saberia ensinar às almas a vencer as tormentas do pecado.
O apóstolo é conduzido à capela, recebe todas as honras e fica.
Mas, quando a noite vem, protegido pelas trevas, o santo deita pés a caminho e vai acolher-se no alto da Crista - num fraguedo de xisto negro, a despenhar-se sôbre o Ôlo.
Escolhe a melhor das pilheirinhas, semeia nela uma erva milagrosa que nunca mais secou e lhe servia de enxergão, e ali ficou a noite inteira entregue, ninguém sabe ao certo, a que cogitações.
Ao romper a manhã, vão os rebordelenses cumprimentar o santo e e dão com o nicho vazio!
Imaginem o quadro se puderem.
Sinos a rebate, fortes cacetes nas mãos calosas, vão procurá-lo e descobri-lo na Crista, silencioso, de olhos postos no fundo do vale.
Conduzem-no de novo ao nicho. Ascendem-lhe velas, levam-lhe o perfume das rosas silvestres, trancam as portas da igreja e vão descansadamente dormir.
Mas, todos sabem que os santos como as bruxas, se quiserem, passam até pelos buracos das fechaduras.
Assim, desta vez, o Padroeiro lá estava na sua pilheirinha, ao luzir das primeiras estrêlas.
E é então que do fundo da aldeia fronteiriça, Canadelo, o povo sobe em procissão o monte abrupto, rodeia o santo, ajoelha, promete dar-lhe uma festa todos os anos, a 29 de Junho, e São Pedro, quási alegre, deixa-se conduzir até ao povoado, sem um protesto nem um queixume, mesmo quando a festa não se realiza. Já o podem ver, no vértice da igreja, desde há séculos.
Afirmam más-línguas rebordelenses que o Apóstolo, não fugiu mercê das férreas cambaldeiras com que Canadelo o soube prender ao altar.
Mas nós, nados e criados nesta aldeia, juramos à fé de quem somos que nunca os nossos olhos viram semelhante grilheta.
E de resto que cadeias há aí capazes de segurar um santo afeito aos maiores temporais e que pôde escapar-se num Amen pelo buraco da mais pequena fechadura que possam imaginar»
Amarante, Canadelo, Novembro de 1941,
Ilídio Sardoeira» in Revista Portugal Económico Monumental e Artístico, da Editorial Lusitana, Fascículo LIV, Concelho e Vila de Amarante.
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