«João, o Romeiro desconfiado
Na aldeia, nos finais do mês de abril,
pela década de setenta, começava um frenesim muito particular, nestas terras de
entre douro e minho. O povo que costumava fazer a peregrinação anual a Fátima
num ritual que, muita gente de então, iniciava fazendo preparação para a mesma.
Primeiro, tratava-se de arranjar alguém que desse apoio de carro, ou,
preferencialmente, de carrinha, aos diferentes grupos e/ou famílias. Uma ou
duas carrinhas, quase sempre as típicas Bedford de caixa fechada, muito difundidas
na época, eram uma preciosa ajuda para o transporte de carga e mantimentos
suficientes para a viajem e um conforto para o descanso dos peregrinos, embora
alguns ficassem ao relento, em locais cobertos, particulares ou públicos, tais
como aquedutos, estações de camionagem, estações de serviço e por baixo de
pontes, arrecadações e alpendres agrícolas com permissão dos respetivos donos,
entre outros.
Entre estes, havia o João da Nora que, foi
sempre um homem bastante preguiçoso, mas com proporcional quantidade de
curiosidade. O avô dele tinha sido um dos peregrinos que, em outubro de 1917 na
Cova da Iria, assistiu ao alegado milagre do sol. João passou a infância a
ouvir relatos do avô sobre essa epifania. Considerou sempre aquela história
pouco credível, mas viveu igualmente com aquele sentimento ambivalente de,
simplesmente não acreditar, mas ao mesmo tempo, com a esperança remota de que
qualquer coisa de sobrenatural pudesse acontecer. Andou de ano para ano, desde
adolescente, com esta preguiça enturpecedora que se misturava com uma
curiosidade quase doentia de saber se acontecia em Fátima algo de paranormal.
Ademais, como era muito avarento, andava sempre a tentar saber qual era o grupo
que levaria mais alimentos e que reuniria melhores condições para uma
peregrinação o mais confortável possível e que fosse para ele mais proveitosa,
monetariamente falando em termos de custos. Claro que, já todos na aldeia o
conheciam e como se tornava chato por alturas da peregrinação à Cova da Iria, pelo
que fugiam quanto podiam dele.
Por alturas dos quarenta anos, João andava
desanimado com a vida. Nunca tinha casado, nem sequer namorado, graças à sua
fama de avarento, de chato, de coscuvilheiro e de tudo o mais que corria na
aldeia acerca dele. Então, depois de muito cismar uma noite, decidiu que iria
empreender a grande aventura, nesse ano, em 1967. Sim, João Romeiro, ia acabar
de vez com a sua curiosidade, ainda mais que Paulo VI viria a Fátima nesse ano,
a sua curiosidade de experiências com o Sagrado estava ao rubro. Para João algo
ia acontecer em Fátima, uma epifania, um crime, qualquer coisa de especial.
Acreditava piamente no que lhe tinham contado numa feira de gado há uns anos:
um dos segredos de Fátima que a Irmã Lúcia guardava, passaria pela morte de um
Papa em Fátima e que Deus como castigo, iria despoletar o fim do mundo através
do fogo. Dizia João que quando foi com Noé, o Mundo acabou pela água, agora
Deus mudaria de sistema e queimaria tudo pelo fogo. Deus faria da terra um
autentico inferno, para redimir os pecados dos homens, que foram de tal forma
que, nem o seu representante na terra, o Papa, foi respeitado pela maldade dos
homens, que derivaram para comportamentos desviantes e costumes mais conformes
com as intenções do Demo que, com as Leis de Deus...
Chegou a data da partida, os peregrinos da
aldeia iam caminhar durante cerca de oito dias, por etapas de distância máxima
de 40 Km por dia. Ia ser uma semana dura, que apelava a todas as forças
humanas, fisicas e psicológicas, daquelas pessoas que iriam empreender tão
nobre jornada. O João, no primeiro dia até Paredes, lá para os lados de Baltar,
ainda se foi aguentando, mas na segunda etapa até Vila Nova de Gaia foi o bom e
o bonito. Ele, preguiçoso como era, não realizou a preparação prévia, umas
caminhadas que o grupo ia fazendo aos fins do dia e aos domingos, para preparar
o corpo para tão grande esforço. O homem só chorava de dores de pernas e dos
pés, com bolhas e a sangrar, de tal forma que, com pena dele a tia Arminda do
Olival Velho, se ofereceu para lhe aquecer água e tratar das feridas dos pés.
Como ele muito se lamentava, deu-lhe uma malga de caldo verde e fez-lhe um chã
para ele dormir melhor. Mas, os dias seguintes foram penosos, o João não
aguentava as dores e tinha que parar muitas vezes. O grupo foi sempre solidário
com ele, os homens mais fortes até o chegaram a levar às costas, em alguns
troços de estrada mais penosos, principalmente nas subidas. De resto, ia sempre
amparado por uns dos homens mais pujantes do grupo.
Dia 11 de maio de 1967, uma quinta feira
cinzenta e a ameaçar chuva que já os tinha encharcado várias vezes pelo
caminho, obrigando-os a embrulharem-se em plásticos, chega o grupo à Cova da
Iria, Santuário de Fátima, totalmente invadido por peregrinos que eram
originários de todos os lados do País e estrangeiro. João deitou-se no chão a
chorar, os colegas ajoelharam-se, todos sentiram a enorme emoção do dever
cumprido, choravam como crianças. Armando das Cortes, o mais experiente e líder
deste grupo, abraçou-se a João e disse-lhe, repetidamente: “Vês Homem de Deus o
que vale a Fé!!! Alguma vez te tinhas sentido assim, tão rico e tão pobre, tão
alegre e tão triste, tão grande e tão pequeno; é isto a Fé, eis o milagre que
já sentiste e que sentimos todos, uns de uma forma, outros de outra, mas jamais
esqueceremos esta experiência individual e coletiva…”
Claro está que, foram umas cerimónias espetaculares,
ainda para mais coincidindo com a visita a Portugal do Papa Paulo VI e nas
cerimónias dos cinquenta anos das aparições, tudo encantou João. Parecia-lhe
que, naqueles dias, tinha vivido pela vida toda. De certa forma, encontrou o
segredo da vida, pelo menos para si. O João mudou, a prova de solidariedade que
o grupo lhe prestou, em circunstâncias tão difíceis, foi decisiva para libertar
um homem que só vivia de intriga, de avareza, sem Fé em si próprio e em
qualquer religião. Tratava-se de um homem vazio, pior que isso, um homem que
não acrescentava nada a ninguém nas relações humanas, o seu verdadeiro desígnio
era a inveja, esse sentimento ignóbil que assola a humanidade em grande escala.
Entretanto, na peregrinação tornou-se próximo da Rita do Vale, uma solteirona
da aldeia, boa rapariga e plena de virtudes. Casaram e tiveram gémeos, dois
herdeiros cheios de saúde e de encanto, o verdadeiro orgulho daquele casal,
outro milagre que os abençoou.
Em suma, numa peregrinação, assim como na
vida em geral, não importa se somos católicos, budistas, islamitas, agnósticos,
ateus… o que conta é aquele momento da chegada a um qualquer destino traçado,
com uma intenção do Bem... uma descoberta interior, o Amor que sentimos e que
podemos partilhar. Só faz sentido acreditar em projetos de Amor, não
patrocinemos, crenças baseadas no ódio e da morte… isto tudo a propósito da recente vinda do Papa Francisco I a Fátima e do abominável ataque terrorista em Manchester...» in http://birdmagazine.blogspot.pt/2017/05/joao-o-romeiro-desconfiado.html
José Cid- "O Fado De Nossa Senhora""O Fado de Nossa Senhora
José Cid
Perguntei a uma velhinha
Se já tinha amado alguém
E a velhinha respondeu
Amei, como uma rainha
E sofri como ninguém
Ninguém amou como eu
Depois sentei-me com ela
Nos degraus duma capela
E ela prosseguiu então
-Se amares alguém, tem cuidado
Que amar pode ser pecado
Ou talvez a redenção
O amor é uma miragem
Pode aparecer-te num pagem
Ou transformar-se em algoz
Pode aparecer-te em pastor
Ou ser Deus nosso senhor
Que morreu por todos nós.
Depois de me aconselhar
A velhinha, coitadinha,
Despediu-se e foi-se embora
E eu tenho estado a pensar
Se aquela linda velhinha
Seria nossa senhora!"
Sem comentários:
Enviar um comentário