«Um museu de boas vontades que se tornou a “casa” de Amadeo
Visita guiada ao Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, em Amarante, pelo director e principal dinamizador da instituição, António Cardoso. “Fomos à conquista do espaço e das obras”.
Visitámos o Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso (MMASC) em Amarante numa segunda-feira, dia do descanso semanal, mas a animação era certamente superior à de um dia normal de funcionamento: vários homens desmontavam, nos claustros, os palcos e equipamentos que tinham acolhido o festival Mimo, que animara esse fim-de-semana, e crianças da escola primária desenhavam as suas pinturas, acrescentando frenesim ao cenário envolvente. Uma delas, Maria Leonor, de sete anos, explicava ao PÚBLICO que fazia parte do Clube de Pintura do museu, enquanto preenchia a negro a fachada de uma casa numa folha pejada de cores. “A escola acabou e agora vimos para aqui, mas amanhã vamos à praia, ou então para a piscina”, acrescentava a menina, que tanto parecia feliz com o que fazia no momento como com a expectativa do dia seguinte.
“É isto que dá verdadeiramente vida aos museus”, comentava, também feliz, António Cardoso (n. 1932), que aceitou deslocar-se propositadamente do Porto a Amarante, sua terra natal, para guiar o PÚBLICO numa visita a este equipamento a que tem a sua vida ligada desde há mais de meio século, e do qual continua hoje a ser director.
Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) – o principal nome do modernismo português, apesar de precocemente desaparecido aos 30 anos, vitimado pela pneumónica – é naturalmente a imagem de marca do museu de Amarante, que a dada altura adoptou mesmo o seu nome. Mas o MMASC é também a casa que ajudou a afirmar a relevância da sua obra: a seguir à Fundação Gulbenkian, é a instituição que detém a maior colecção de obras de Amadeo, iniciada nos anos 50, quando recebeu, “quase por favor”, recorda António Cardoso, a sua tela Vida dos instrumentos (c.1915/16), primeira de várias doações da família do artista nascido na Casa de Manhufe, na freguesia amarantina de Mancelos.
Sala Amadeo em 1953
Antes dessa data, mas já após a sua morte, o pintor tinha sido alvo de duas homenagens em Lisboa: no 1.º Salão de Outono (1925) e numa colectiva de pintores contemporâneos na Galeria de Março, dirigida por José-Augusto França (1952), além da criação, em 1935, pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) do Estado Novo, de um prémio com o seu nome. Mas a revelação da extensão e da modernidade da obra de Amadeo, se se deveu a historiadores e críticos como França, foi também responsabilidade do Museu de Amarante, que em 1953, já pela mão de António Cardoso – nessa altura membro do recém-criado grupo de amigos da biblioteca-museu, e professor da escola primária –, inaugurou a Sala Amadeo de Souza-Cardoso, expondo nela um primeiro acervo de 33 obras.
Na mesma altura foram também criadas salas dedicadas a outros artistas da terra, entre os quais o bem conhecido pintor António Carneiro (1872-1930), e, posteriormente, Acácio Lino (1878-1956), “um pintor de cenas históricas e de costumes”, explica António Cardoso, mostrando-nos os quadros O grande desvairo (1920), que recria a trasladação de D. Inês para o Mosteiro de Alcobaça, e onde se nota “uma tangente às formulações saudosistas do seu conterrâneo Teixeira de Pascoaes”, e Amuada (1947), uma cena de vindimas; e Eduardo Teixeira Pinto (1933-2009), o fotógrafo que “retratou Amarante um bocado como o Amadeo, na radicação com a terra, o rio, a ponte, a montanha”.
Anúncio do cubismo
Desde a década de 50, a Sala Amadeo foi crescendo – actualmente, a colecção do MMASC conta 37 obras, incluindo algumas depositadas pela família do pintor –, e mudando de lugar. “Mas no Amadeo nunca se mexe”, diz agora o director do museu, referindo-se ao facto de o edifício do velho convento dominicano de S. Gonçalo manter sempre reservado o seu espaço nobre para o artista de Manhufe.
É aí que se pode percorrer a sua obra, em peças como a famosa A casa de Manhufe (c. 1913), que – realça António Cardoso – “anuncia já o cubismo: é ele a dizer o que pensa para além do que vê”, ou Crime abismo azul, remorso físico (1915) e Máscara azul (c.1916), nas quais se inspirou o cineasta Paulo Rocha quando realizou o documentário Máscara de Aço Contra Abismo Azul (1988); ou ainda a série de caricaturas onde se destaca a figura de Emmerico Nunes (1888-1968), pintor e caricaturista também da geração dos modernistas, e que foi amigo de Amadeo.
A Sala Amadeo é, pois, aquela que nunca é sacrificada à necessidade de adaptação dos espaços do museu às exposições temporárias que este promove todos os anos. Por estes dias, por exemplo, pode-se admirar no rés-do-chão O Surrealismo em Portugal – Colecção da Fundação Cupertino de Miranda (até 16 de Setembro), ao passo que, no primeiro piso, Os Modernistas. Amigos e Contemporâneos de Amadeo de Souza-Cardoso dá a ver 15 artistas seleccionados da Colecção Millennium bcp (até 20 de Outubro).
Vamos ver a exposição em que cuspiram nos quadros de Amadeo
“Olhe que fantásticas, aquelas três telas do Júlio! Só um banco teria condições para reunir uma colecção como esta”, diz António Cardoso frente a três pinturas do irmão de José Régio, que assinava, enquanto poeta, Saúl Dias – e de quem o painel de apresentação da exposição em Amarante cita os dois primeiros versos do poema Para todo o sempre: “O poeta morre,/ mas não cessa de escrever.” E o director do MMASC chama a atenção para a oportunidade que assim se cria para cotejar a obra de Amadeo com este acervo de nomes grandes do modernismo português, entre os quais estão António Carneiro, Almada Negreiros, Eduardo Viana, Bernardo Marques, Jorge Barradas, Carlos Botelho e outros.
Um século de arte
“Este é um museu de boas vontades; nunca tivemos condições para fazer grandes aquisições, por isso recorremos aos gestos simpáticos dos artistas amigos”, diz António Cardoso a explicar como é que o Museu de Amarante conseguiu criar uma colecção que permite ao visitante fazer uma bem documentada viagem pela história da arte portuguesa do último século.
“Muitas vezes, eu e o Victor Sardoeira [filho de Albano Sardoeira, fundador do Grupo de Amigos da Biblioteca-Museu Municipal] íamos ao Porto ter com os artistas nos seus ateliers; levávamos umas garrafas de vinho de Amarante e… regressávamos com uma obra para o museu”, conta António Cardoso, entre risos.
Paralelamente às “conquistas” artísticas, o MMASC que actualmente existe resulta também da conquista de espaços que historicamente foram tendo diferentes valências. “Aqui, na sala que foi o núcleo inicial do museu, era antes a escola primária – por aqui andaram o Pascoaes e o Amadeo – e depois foi também liceu”, explica o director ao franquear a antiga entrada do edifício. Mas o velho convento acolheu também as finanças e o registo civil, foi teatro e cinema, arquivo e biblioteca, até ser restaurado e adaptado à valência exclusiva de museu na década de 80, através de um projecto do arquitecto Alcino Soutinho.
“Fomos fazendo aqui uma reconquista à maneira do Afonso Henriques”, brinca António Cardoso, que foi também realizador da Telescola, professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde se licenciara em História (e fez o doutoramento sobre a obra do arquitecto José Marques da Silva), e é também pintor.
A menina de Clara Menéres
Como museu, “temos aqui bons exemplos da pintura e da escultura portuguesa do século XX, desde os nomes do modernismo e figuras estimáveis do surrealismo – Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas, por exemplo –, até vultos como Vieira da Silva ou Paula Rego, Júlio Resende ou José de Guimarães”, acrescenta o director. E ainda obras de Alvarez e Jorge Pinheiro, de Lourdes Castro e Nadir Afonso, de António Palolo e Armando Alves, de Barata-Feyo e Gustavo Bastos, de Clara Menéres e Álvaro Siza – deste, Cardoso recorda que um dia o arquitecto visitou o museu e “já não se lembrava desta pintura”, intitulada Presença mágica (s/d).
E se cada peça tem a sua história, uma das mais curiosas é a da escultura em gesso de Clara Menéres, A menina Maria Amélia que vive na Rua do Almada (1968), que a artista recentemente desaparecida doou ao museu de Amarante no início da década de 70, por nele ter encontrado a colecção de arte moderna que lhe pareceu ter mais afinidades com a sua obra. O MMASC expôs a escultura em 1973, mas esta provocou escândalo, e houve mesmo um professor amarantino catedrático de Coimbra, Torquato de Souza Soares, que registou no livro de honra do museu “um protesto indignado” pela amostragem de uma obra que classificou como “a mais porca e miserável pornografia, que só seria admissível num bordel muito reles”, tendo movido influências para que fosse retirada. “E só conseguimos voltar a expô-la depois do 25 de Abril [de 1974]”, recorda António Cardoso.
Dois prémios bienais
Em 1997, o MMASC decidiu lançar um prémio com periodicidade bienal com o nome do seu patrono, que simultaneamente distingue uma carreira reconhecida (o primeiro foi Fernando Lanhas; no ano passado, foi Jorge Pinheiro) e um artista das novas gerações (Albuquerque Mendes, em 1997; Sebastião Resende, em 2017). Associadas a estes prémios estão as aquisições de algumas obras: “São as únicas que fazemos, além de continuarmos a acolher doações”, justifica o director).» in https://www.publico.pt/2018/08/25/culturaipsilon/noticia/um-museu-de-boasvontades-que-se-tornou-na-casa-de-amadeo-1839134
(Museu Amadeo Souza-Cardoso)
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