«O Novembro quente de 1975
Há 40 anos, era fundado o “arco da governação”, esse mesmo que está, agora, por um fio. Recorde as imagens desse período e relembre, em seis pontos, como tudo aconteceu e descubra as diferenças entre aquele mês fervilhante e este novembro escaldante...
Em 1975, António Costa, atual líder do PS, tinha 14 anos e iniciava-se na atividade política. A 25 de novembro desse ano, forças moderadas e radicais defrontaram-se numa luta de morte. Ganharam os moderados. O arco da governação, composto por PS, PSD e CDS, iniciava o seu longo ciclo e os comunistas eram banidos do poder. Até hoje. Se tem menos de 40 anos e não percebe o que tem de tão especial e histórico o acordo recente que o PS fez com os partidos à sua esquerda, leia este texto. Se viveu os acontecimentos, recorde este clássico a preto e branco que nos espreita de um outro século, e confira, em seis perguntas e respostas, como tudo aconteceu.
1 - O QUE ERA A FUR?
Com a liderança do PCP, criada a 25 de agosto, a Frente de Unidade Revolucionária (FUR) tinha sido constituída, para preparar, nas ruas, o golpe que aniquilaria as forças da «reação» e colocaria no poder um governo da vanguarda revolucionária. O PCP deixaria cair o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, seu compagnont de route, mas já esgotado por mais de um ano de sucessivos governos provisórios, cada vez menos populares. Sucedeu-lhe o almirante Pinheiro de Azevedo, aceite pelos comunistas mas que rapidamente lhes fez frente. A FUR incluía a LCI, movimento trotskista, onde militava Francisco Louçã, hoje no Bloco de Esquerda; o MDP (partido satélite do PCP, equivalente ao que são hoje os Verdes); a FSP (dissidentes do PS); o PRP-BR, de Isabel do Carmo e Carlos Antunes (mais tarde indiciados por atos terroristas); a Organização 1.º de Maio; e a LUAR, movimento autor de ações espetaculares contra a ditadura de Salazar e Marcelo Caetano. Os diversos partidos inscreviam-se nas correntes mais díspares – e rivais – e faziam a síntese impossível: havia leninistas, trotskistas, não alinhados, católicos progressistas e até alguns maoistas. Só a UDP, da linha albanesa, corria em pista própria. A junção de todos estes movimentos inconciliáveis só se percebia à luz da preparação de uma frente comum contra todos os que defendiam um regime parlamentar, pluralista, alinhado com a Europa Ocidental, a CEE e a NATO. A FUR tinha um braço-armado clandestino nas Forças Armadas, os SUV (Soldados Unidos Vencerão), encarregado de espalhar propaganda e promover a agitação nos quartéis, à margem da tr adicional disciplina militar.
2 - COMO AGIRAM OS COMUNISTAS?
Os comunistas recuaram no último momento. O todo-poderoso secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, percebeu que, numa guerra civil, os revolucionários perderiam contra as forças moderadas, que detinham as principais unidades militares do País e tinham a grande maioria da população a seu favor. Em caso de conflito, e derrota, o PCP seria arrastado e corria o risco de desagregação, carregando o ónus da eclosão de uma guerra civil. Na composição parlamentar da Assembleia Constituinte, eleita a 25 de abril desse ano, as forças revolucionárias tinham 36 dos 250 deputados e as forças moderadas 214... Nas vésperas de 25 de novembro, no maior secretismo, elementos do MES, partido de socialistas radicais mas não totalitários, convencem Cunhal para um encontro secreto com o líder dos militares moderados, o prestigiado ideólogo do 25 de Abril, coronel Ernesto Melo Antunes.
3 - O QUE FOI O ENCONTRO SECRETO?
O encontro secreto entre Cunhal e Melo Antunes (negado, até ao fim da vida, pelo líder histórico comunista, mas hoje inequivocamente comprovado...) dá-se em casa de Nuno Brederode Santos, um dos melhores amigos de Jorge Sampaio, cofundador do MES e depois aderente ao PS (em 1978, com Sampaio e outros socialistas independentes). O encontro, na residência situada na Estrada das Laranjeiras, em Lisboa, é narrado pelo anfitrião ao jornalista José Pedro Castanheira, no livro Jorge Sampaio, uma biografia: "Primeiro, apareceu o Melo Antunes, sozinho. Depois o Cunhal. Após as cortesias normais, retirei-me. Tomei banho, estive na cama a ler, até que ouvi o Melo Antunes a chamar. Fui até à sala e conduzi o Cunhal ao elevador. Melo Antunes ficou mais meia hora comigo. Não revelou nada de concreto, mas disse o suficiente para eu perceber que estava a tirar ilações corretas da conversa." Nenhum dos protagonistas jamais assumiu o encontro, mas o que parece é que, em troca da não participação do PCP em qualquer golpe, os moderados garantiam a sua sobrevivência, após a clarificação militar iminente e no quadro da nova recomposição política do País.
4 - QUEM ERA MELO ANTUNES?
Melo Antunes era um militar antimilitarão, intelectual, que preferia o fato e gravata à farda e que percebia mais de política do que de táticas castrenses. Ele já havia sido o ideólogo político do 25 de Abril e redator do programa do MFA (Movimento das Forças Armadas), e tinha sido, também, o redator do famoso Documento Melo Antunes, ou Documento dos Nove, por ser subscrito por nove oficiais do MFA e membros do Conselho da Revolução. Nesse texto de 9 de agosto, no auge da revolução, os signatários defendem uma via democrática e pluralista e, numa alusão aos revolucionários e ao PCP, rejeitam “qualquer tipo de totalitarismo”. A 10 de agosto o PCP reagia com uma reunião secreta do Comité Central, em Alhandra, onde Álvaro Cunhal não põe de lado a tomada do poder por meios não pacíficos. Esta reunião precede a criação da FUR, a 25 de agosto. Os vanguardistas querem levar a revolução marxista às últimas consequências. Os moderados têm em conta a vontade da população e os resultados eleitorais. A 25 de novembro os primeiros dão o primeiro passo militar que se salda pela vitória dos segundos. Fecha-se o ciclo revolucionário e acaba o PREC. Abre-se o caminho à democracia parlamentar e à integração europeia.
5 - QUEM FORAM OS PROTAGONISTAS?
Quando o golpe se dá, na madrugada de 25 de novembro, a ordem da direção do PCP aos seus militantes é para que "ninguém saia à rua!". Outra das figuras militares conotada com os golpistas, o poderoso comandante do COPCON (Comando Operacional do Continente) é também convencido a ficar quieto e é neutralizado. Otelo Saraiva de Carvalho passa a maior parte do tempo incontactável, fechado no Palácio de Belém, onde o Presidente Costa Gomes representa um papel crucial de moderação e de defesa da legalidade. Está evitada a guerra civil.
As forças moderadas, mais numerosas, organizadas e disciplinadas, são coordenados pelo até então obscuro coronel António Ramalho Eanes (que seria depois eleito Presidente da República, nas primeiras eleições presidenciais por sufrágio universal, em 1976, e reeleito em 1980), e anulam, com profissionalismo militar, a aventura dos revoltosos, mal organizados e pouco disciplinados. Pires Veloso, comandante da Região Militar Norte, Franco Charais, seu congénere do Centro e Vasco Lourenço, homólogo em Lisboa, são homens dos nove ou próximos do grupo. Têm o Exército na mão. Jaime Neves, líder dos Comandos da Amadora, protagoniza as ações mais espetaculares, ao expulsar os ocupantes do emissor de Monsanto da RTP e ao cercar o poderoso quartel de Lanceiros 2, na Ajuda, onde está a força revolucionária da Polícia Militar (PM) liderada pelo major Mário Tomé, mais tarde deputado da UDP (partido hoje absorvido pelo Bloco de Esquerda). Esta ação provoca os únicos mortos – três – do 25 de novembro, todos militares da PM. Não é, propriamente, o temido banho de sangue...
6 - COMO SE SAFOU O PCP?
No dia seguinte, Melo Antunes cumpre a sua parte do acordo com o líder comunista e trava as aspirações de uma certa direita revanchista. Ele sabe que é, nesse momento, o homem mais influente do País. Num instante, e em 35 palavras fundadoras, condiciona, através das câmaras da RTP, o que será o regime nas próximas décadas: "Eu quero dizer, neste momento, e considero isso muito importante, que a participação do Partido Comunista Português na construção do socialismo é indispensável. Não me parece que seja possível, sem o PCP, construir o socialismo”. Esta terminologia parece algo anacrónica mas, traduzida para linguagem atual, a "construção do socialismo" é o equivalente à "estabilização da democracia".
O Verão Quente, entre 11 de março e 25 de novembro, fora longo – oito meses de constante tensão político-militar e um clima de guerra civil latente. Pelo meio, o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo chegou a ser cercado, com o seu Governo, em São Bento, por elementos da FUR e o Governo chegou a entrar em greve! O cerco repetir-se-ia, poucas semanas antes do 25 de novembro, em torno do Parlamento, pelos sindicatos da construção civil, apoiados pela FUR. Os deputados da Assembleia Constituinte estiveram sequestrados 48 horas, enquanto operários em fato de macaco ocupavam o vetustos sofás dos corredores, numa reconstituição lusitana da tomada do Palácio de Inverno, pelos bolcheviques, na revolução russa de 1917... O 25 de novembro normaliza o esquizofrénico clima político nacional. A estabilização surge com a aprovação da Constituição, em 1976, com os votos de todos os partidos à exceção do CDS, e com a eleição do I Governo Constitucional, chefiado por Mário Soares (PS).
O arco da governação durará 40 anos. António Costa tinha 14 anos e, embora filho de um militante comunista, começa a fazer política ao lado dos moderados. Aos 14 anos, é, também, um vencedor. Mas o líder socialista sempre conheceu bem os dois lados da barricada. Será ele, quatro décadas depois, a reabilitar os derrotados do 25 de novembro. Se Cavaco Silva, que começava, em 1975, a simpatizar com Sá Carneiro e com o PPD, o consentir. Uma ironia da História pode empurrar a decisão para... 25 de novembro. É já daqui a seis dias. fluis@visao.impresa.pt» in http://visao.sapo.pt/actualidade/portugal/2015-11-24-O-Novembro-Quente-de-1975
(25 de Novembro de 1975)
Do 25 de Abril ao 25 de Novembro - (versão integral)
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