30/11/18

Desporto Futebol - O último malandro do futebol brasileiro romântico fez de tudo ao longo de 26 anos para não entrar em campo e acabou por ficar na história como o maior '171' do futebol brasileiro.

   
A carteira de futebolista profissional de Carlos Kaiser da época 1987/1988 ao serviço dos franceses do Ajaccio
 

«AS EXTRAORDINÁRIAS BALADAS DE CARLOS KAISER, O CRAQUE QUE 'FINTOU AS QUATRO LINHAS' PORQUE NÃO GOSTAVA DE JOGAR FUTEBOL

Carlos Kaiser construiu uma carreira profissional de futebolista sem realizar um único jogo no Brasil. Passou pelo estrangeiro e conheceu alguns dos maiores jogadores da sua geração, mas o seu jogo era outro.

O último malandro do futebol brasileiro romântico fez de tudo ao longo de 26 anos para não entrar em campo e acabou por ficar na história como o maior '171' do futebol brasileiro. Carlos Kaiser é atualmente personal coach especialista em fisioculturismo e ao SAPO Desporto conta-nos a sua história digna de uma tragicomédia grega.

Treinava, chegava a horas, mas nunca jogava. Aliás, quando tinha de jogar o seu verdadeiro talento vinha ao de cima mas para 'fintar as quatro linhas'. Fingiu lesões numa época em que não havia possibilidade de realizar exames de ressonância magnética e há até histórias de um amigo dentista que lhe passava atestados para contornar o campo.

A história de Carlos Kaiser no futebol brasileiro é tão incrível e improvável que levou à produção de um filme onde é contado o percurso de um jogador que não gostava de jogar futebol, mas que fez carreira profissional e representou os principais clubes do Rio de Janeiro.

"A minha maior riqueza é todos os jogadores que falam no filme e que não tiveram oportunidade de falar e são muitos, são todos jogadores de Seleção. Tudo jogadores famosos. 70 entrevistas com todo o mundo falando bem de mim. Se eu prejudiquei alguém, foi apenas a mim próprio. Não aos outros, pelo contrário, aos outros eu só ajudava", diz Carlos Kaiser sobre os muitos depoimentos de verdadeiros craques do futebol brasileiro como Renato Gaúcho, Romário ou Bebeto.

"Eles queriam-me convencer do contrário, que eu era jogador de futebol. Eu não deixava que eles se envolvessem com bebidas, com drogas. Quando eles estavam bêbados era eu que dirigia o carro. Tentava evitar que eles se envolvessem com pessoas obscuras, esse tipo de coisas. Eu sou um ídolo dos jogadores. Até os dirigentes também gostavam de mim, a imprensa também até porque essa história só veio à tona agora. Parei de jogar futebol aos 41 anos. Estou com 55 anos", acrescenta Ricardo Henrique Raposo, mais conhecido por 'Kaiser', uma alcunha que ganhou quando ainda era muito jovem.

Minha mãe me batia, não tinha como dizer que não queria jogar futebol

Kaiser começou no futebol como muitos meninos no Brasil. Numa habitual 'peladinha' de rua passou um dirigente do Botafogo e identificou um menino de 10 anos para as camadas jovens do clube carioca. Mas ao contrário da maioria dos rapazes da sua idade, Carlos Henrique Raposo queria estudar e ser professor de educação física.

"Eu comecei no Botafogo com 10 anos. Eu não fui adoptado, eu fui roubado. Antigamente havia a lei do passe aqui no Brasil. Essa senhora minha mãe vendeu o passe para um empresário que colocou uma multa rescisória muito alta e eu era obrigado a ir de clube para clube mesmo sem querer. E foi assim que tudo começou com o meu primeiro contrato. Se eu tinha o sonho de futebolista? Eu queria era estudar, acho que tal como os jogadores da NBA você pode praticar desporto e adquirir cultura. Acho que uma coisa não impede a outra. Só que a minha mãe só queria que eu jogasse futebol porque com 10 anos eu já ganhava dinheiro para sustentar a minha família toda. Minha mãe me batia, não tinha como dizer que não queria jogar futebol mas obrigaram-me a jogar. Foi um dom que Deus me deu que eu não queria ter", confessa Carlos Kaiser.

Seis anos depois de começar as dar os primeiros passos de futebolista no Botafogo, Carlos Kaiser rumou ao Flamengo onde esteve apenas um mês como juvenil para depois rumar ao Puebla do México com apenas 16 anos.

Pouco tempo depois de ingressar no Botafogo, Kaiser, assim apelidado devido a semelhanças físicas com Franz Beckenbauer, antigo campeão do mundo alemão de 1974, sai rumo ao Flamengo. Durante um treino na Gávea, observadores do clube mexicano Pueblo identificam talento em Kaiser e contratam-no com 16 anos. No seu primeiro clube estrangeiro não faz um único jogo em dois anos mas regressa ao Brasil para o Botafogo em 1981 já com a carteira de profissional. E foi assim que começou a vida de saltimbanco por vários clubes do Rio de Janeiro ao longo de duas décadas sem fazer um único jogo, provavelmente um recorde único no futebol mundial.

"Simulava contusões forçava expulsões. Eu durante a semana treinava muito. Era o primeiro a chegar, o último a sair, eu não criava problema nenhum. Agora no dia do jogo alguma coisa ia acontecer", Carlos Kaiser

"Eu não quero jogar, eu não quero jogar. Eles insistiam que eu tinha de jogar. Teve uma vez que o América do Rio de Janeiro ficou três vezes sem pagar o salário. A Water Proof, uma marca de relógios que já não existe, eu conhecia o dono Rogério. Eu falei, ‘Rogério, o time usa todo o equipamento que você vende, fala de você e você paga os salários em atraso, e aí o cara foi e pagou os salários em atraso. Então você acha que algum jogador ia deixar eu ir embora? Treinei de salário atrasado e eu resolvi tudo", afirma Carlos Kaizer sobre uma das muitas situações em que recorreu aos seus contactos para ajudar os companheiros de equipa.

Em 1983 Carlos Kaiser conhece Renato Gaúcho numa boate num episódio caricato e tornam-se amigos inseparáveis nas noites de Carnaval no Rio de Janeiro. Numa festa dedicada ao craque do Flamengo, Carlos Kaiser acaba por ser confundido com Renato Gaúcho e entra na festa como anfitrião. Quando o jogador do Flamengo chegou à porta da boite foi travado pelo porteiro o que gerou alguma confusão. E é nos circuitos de boites do Rio de Janeiro que Carlos Kaiser estabelece laços de amizade com jogadores famosos e jornalistas desportivos e que constrói uma rede de contactos que lhe permite criar uma espécie de imagem de avançado centro goleador com passagens por clubes como Independiente e Ajaccio.

Durante anos, Carlos Kaiser alegava ter pertencido ao plantel do Independiente que vencera o Mundial de Clubes e a Copa Libertadores em 1984. No entanto, o único Carlos Henrique que jogava nessa equipa era argentino e não brasileiro.

Já no Ajaccio a história é outra. Carlos Kaizer representou o clube da terceira divisão francesa e antes de rumar a França esteve perto de jogar no Louletano, mas devido a alegados problemas do clube algarvio o jogador brasileiro acabou por rumar à Córsega onde teve de colocar em prática toda o seu instinto de sobrevivência.

Logo na apresentação, Kaiser apercebeu-se que estava previsto um treino no relvado porque havia bolas por todo o lado e num acto de improviso, o 'reforço' brasileiro começou a rematar as bolas para as bancadas cheias de adeptos e a beijar o emblema da camisola.

"Quando tinha de ir a festas, recepções, entregar a camisola do time era eu que era sempre solicitado. Relações públicas da altura. Nós éramos patrocinados pelo Hipermarchet Corseg, o maior supermercado da altura na França. Quem tirava fotos e tudo era eu. Não eram os outros jogadores. Já que eu estava lá [no futebol] e tinha contrato, alguma coisa eu tinha de fazer", disse Carlos Kaiser.

Com fama de goleador conquistada em França, Kaiser regressa ao futebol brasileiro para jogar no Bangu numa altura em que Castor de Andrade era presidente do emblema carioca e um dos homens mais temidos no Brasil devido às suas alegadas ligações ao jogo ilegal.

Depois de aplicar o seu esquema no Bangu, os meses iam-se passando e Kaiser não jogava. O presidente do clube perdeu a paciência e exigiu ao treinador Moisés que o convocasse para um jogo.

"Eram quatro da manhã e eu estava numa boite no Rio que se chamava Calígula, não existia celular na altura", começa por recordar Kaiser.

"O treinador Moisés que jogou no Vasco me liga para a boite e fala: 'oh, amanhã eu vou ter de te botar no banco, você pode vir mas eu não vou botar você para jogar. E aí eu falei: 'não pode botar, são quatro da manhã. Vou chegar à concentração ao meio-dia. O jogo é às quatro horas da tarde. E Bangu é um bairro muito quente aqui no Rio, um autêntico inferno. Quando eu fui para o jogo com cinco minutos e começamos a tomar 1-0. Aos sete minutos o 2-0 então o doutor Castor [de Andrade] manda uma mensagem via walkie-talkie dizendo que eu tinha que entrar. Aí o treinador falou: 'o homem tá mandando você entrar' e me mandou para o aquecimento", acrescenta Kaiser.

Perante a situação incontornável de entrar no jogo e ser desmascarado, Carlos Kaiser volta a driblar as 'quatro linhas' e aproveitando os insultos das bancadas durante o aquecimento saltou a rede e agrediu um adepto. A estratégia funcionou, uma vez que Kaiser acabou por ser expulso e receber ordem para regressar aos balneários.

Após o final do jogo realizado no Estádio Moça Bonita, Castor de Andrade desce até ao balneário para pedir explicações a Kaiser noutro episódio digno de um filme, o jogador consegue dar a volta a uma situação extrema e ainda tem direito a um aumento salarial.

"Eu sentei no vestiário, o doutor Castor entra, quando ele chega próximo de mim eu falo para ele: ‘Antes que o senhor diga qualquer coisa, Deus me deu um pai e levou. E Ele me deu outro. Então jamais vou admitir que digam que meu pai é ladrão e os torcedores estavam atrás de mim falando isso.’ Ele me segurou pela nuca, me deu um beijo e me convidou para viajar. Renovou comigo por mais seis meses e com o dobro do salário", recorda Kaiser.

Apesar de não jogar futebol, Carlos Kaiser procurava ajudar os companheiros das equipas por onde passava. Aproveitando a sua vasta rede de contactos, Kaiser era um autêntico relações públicas dos jogadores: organizando festas, churrascos, garantindo patrocínios e convidando algumas das mulheres mais bonitas do Rio de Janeiro para conviver com os craques. Os esquemas para encobrir a sua história atingiram o estatuto de lenda no futebol carioca e o nome de Carlos Kaiser ficou para sempre associado à alcunha de "O Maior Malandro do Futebol Mundial".

"Por exemplo, o time ia concentrar, tem jogo hoje. Eu chegava três dias antes com umas 15/20 mulheres, hospedava elas dois andares em baixo e de noite os caras só tinham de descer as escadas e fazer a festa", relata Carlos Kaiser.

"Sou viciado em sexo, mulher, entendeu? Mas eu não bebo, eu não fumo, não uso drogas, nada disso. Nunca lesei ninguém, nunca roubei. Os jogadores queriam-me convencer que eu era jogador de futebol. Eu não deixava que eles se envolvessem com bebidas, com drogas. Quando eles estavam bêbados era eu que dirigia o carro. Tentava evitar que eles se envolvessem com pessoas obscuras, esse tipo de coisas. Eu sou um ídolo dos jogadores. Até os dirigentes também gostavam de mim, a imprensa também até porque essa história só veio à tona agora. Parei de jogar futebol aos 41 anos. Estou com 55 anos. Em 90 minutos mesmo só joguei uns 20 jogos. Golos? Marquei uns 15, no máximo 30. Esse negócio de jogar futebol, de filmes, isso tudo, isso não me fascina. Eu não tenho essa fixação", afirma Carlos Kaiser sobre a sua passagem pelo futebol.

Se o Cristiano Ronaldo jogasse na Seleção brasileira já tinha sido campeão do Mundo faz tempo
Sobre Portugal, Carlos Kaiser assume que Cristiano Ronaldo é o melhor jogador do mundo depois de Renato Gaúcho e que se indentifica com Fernando Couto.

"Se o Cristiano Ronaldo jogasse na Seleção brasileira, o Cristiano Ronaldo já tinha sido campeão do Mundo faz tempo, só que ele joga sozinho infelizmente. Me desculpa por esta opinião. Para mim os maiores jogadores portugueses são o Ronaldo, Eusébio, Figo e Paulo Futre. Identifico-me muito com a mentalidade do Fernando Couto, um jogador muito aguerrido", afirmou Carlos Kaiser.

Waltinho: "Kaiser é um 171 do bem"

171 é um código que faz referência ao artigo nº 171 do Código Penal Brasileiro, referindo-se ao ato de estelionato, ou seja, um indivíduo que pratica crime de fraude, induzindo alguém em erro para ganhar vantagem ilícita (para si ou para terceiros) em prejuízo de outrem. No gíria popular do Brasil, apelidar alguém de '171' é chamar-lhe de embusteiro, impostor ou intrujão.

Em entrevista ao SAPO Desporto, Waltinho, ex-jogador do Sporting e amigo de Carlos Kaiser, explica como é que o 'Maior Malandro do Futebol Mundial' conseguiu conquistar a confiança de alguns dos maiores jogadores brasileiros da sua geração sendo um '171 do bem'.

O Carlos não jogava nada

"O Carlos Kaiser era um 171 do bem. Foi por isso que ele conquistou tanta amizade junto de jogadores famosos. Se fosse sacana, se fosse do mal, ninguém, especialmente eu, não seria amigo dele. Como o Renato Gaúcho, o Ricardo Rocha ou tantos outros. Ele era alguém que fazia essas aldrabices pelo bem, para ajudar as pessoas, nunca para prejudicar ninguém. Nunca tentou sacar dinheiro de ninguém. É um cara do bem, honesto, alegre, mas não jogava nada. O Carlos não jogava nada", sentenciou Waltinho ao SAPO Desporto sobre as possíveis qualidades de futebolista de Kaiser.

"Ele foi sempre honesto com presidente e com o treinador: ele sempre dizia 'eu não quero jogar. O meu negócio é ter a carteira de trabalho assinada. Porque eu tendo essa carteira de trabalho assinada eu tenho como arranjar patrocínios'", acrescentou Waltinho.

O especialista em fitness e fisioculturismo

 Carlos Kaiser durante um treino fitness e fisioculturismo no seu ginásio
Carlos Kaiser durante um treino fitness e fisioculturismo no seu ginásio créditos: D.R.

Depois de anos a forjar uma carreira de futebolista profissional, Carlos Kaiser abraçou finalmente a sua verdadeira paixão tornando-se professor de educação física e treinador de duas categorias de fitness e fisioculturismo.

"Eu treinava muito, gostava de treinar. Eu só não queria era jogar. Eu não queria ser jogador de futebol. Eu queria ser o que seu sou hoje. Professor de educação física eleito por cinco federações como o melhor treinador nas categorias de Wellness e Modus. Eu sou apresentador de dois programas no Youtube", começa por dizer Carlos Kaiser sobre a sua atual profissão.

"Eu ministro muitas técnicas que aprendi com os maiores preparadores físicos que eu tive. Paulo Paixão, Ronaldo Torres, Cláudio Café, Ademildo Geraldo Pai, Ademildo Geraldo Filho. Muitas técnicas que eu aprendi no futebol eu aplico no meu ginásio onde eu dou aulas", acrescenta Carlos Kaiser.

"Hoje eu sou o vice-presidente da Federação chamada Brasil Fitness Show. Fui convidado pelo presidente André Andrade. É uma federação só de mulheres e de transsexuais. Foi eleito por cinco federações como o melhor coach de welness e modus, que são duas categorias", sentenciou o agora especialista de fitness.» in https://desporto.sapo.pt/futebol/brasil-futebol/artigos/as-extraordinarias-baladas-de-carlos-kaiser-o-craque-que-fintou-as-quatro-linhas-porque-nao-gostava-de-jogar-futebol

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