15/09/12

Política Nacional - Eis uma análise desapaixonada e coerente da situação política e social Portuguesa, por José Manuel Fernandes!

«Extremo Ocidental - O caldo entornou-se e isto pode não ter remédio
Por José Manuel Fernandes

Na sexta-feira da semana passada, Passos Coelho perdeu o país. Não sei se vai conseguir recuperá-lo. Não consigo imaginar as consequências - o meu artigo do Público:

Previa-se mau tempo para Setembro. Mas declarou-se uma tempestade sem fim à vista. E o pior de tudo é que quem devia estar a segurar o leme não parece ter percebido a dimensão da borrasca.

O que aconteceu na sexta-feira foi uma ruptura psicológica. Antes de o primeiro-ministro falar, os portugueses encaravam com ansiedade o regresso à normalidade depois do Verão; depois da sua desastrada comunicação, estavam em estado de choque. Naqueles minutos, Passos Coelho perdeu o país. Não sei como vai conseguir recuperá-lo. E não consigo imaginar que consequências isso terá.

Os erros políticos do Governo entram pelos olhos dentro. Porque é que Passos decidiu falar à pressa, antes de um jogo de futebol? Porque não anulou a ida a um espectáculo? Quem se lembrou da patética mensagem no Facebook? Porque é que não disse tudo o que tinha a dizer e deixou metade das notícias para o ministro das Finanças? Porque é que este também não disse logo tudo de uma vez? E por aí adiante. Mas que ninguém se iluda: mais habilidade - ou menos incompetência - na comunicação poderia ter aliviado os sintomas do mal-estar, mas não mudaria o essencial. 

E o essencial é que o Governo há meses que estava a perder o país porque há meses que estava a perder o debate político. Por erros próprios e por males antigos, pois não chega uma ameaça de bancarrota para mudar a forma de pensar de um país habituado, há séculos, à dependência do Estado. 

Há pouco mais de um ano ninguém em Portugal - à excepção dos lunáticos da esquerda radical - duvidava que precisávamos de uma cura de austeridade e que fazer emagrecer um Estado que tinha crescido desmesuradamente ia ser um processo difícil e demorado. 

Passado pouco mais de um ano, todos gritam que a "austeridade falhou" e que o modelo "não funciona". Há um ano era claro para quem tivesse os olhos abertos que, depois de uma "década perdida" sem crescimento, o velho modelo de "estímulos à economia" não se podia repetir e que era preciso procurar outros caminhos. 

Agora todos parecem reivindicar "políticas de crescimento" baseadas exactamente nas mesmas fórmulas que só nos deixaram dívidas e estagnação económica. Este paradoxo teve uma boa expressão pública, nos últimos dias, na insensata entrevista de Manuela Ferreira Leite, que chegou ao ponto de sugerir que a austeridade era como um xarope desagradável que não se podia pedir ao doente para voltar a tomar. 

Passámos o mês de Agosto a ouvir declarações sobre os limites da austeridade, a impossibilidade de novos impostos ou de mais cortes nas despesas públicas. Líder da oposição, Presidente da República e dirigentes destacados dos partidos da coligação contribuíram para a ilusão, uma ilusão fatal. O primeiro-ministro, com dois discursos inúteis no Pontal e em Portalegre, também não se isenta de responsabilidades.

Ninguém avisou para o que ia acontecer apesar de se acumularem os sinais da borrasca. O Tribunal Constitucional dera uma machadada na política orçamental, abrindo um buraco de difícil solução. A diminuição das receitas dos impostos tornara o orçamento irrealizável. E a troika estava a chegar para nova avaliação. Estava-se mesmo a ver que iria haver mortos e feridos, mas só se escutavam discursos delicodoces. Pior ainda: a decisão do Banco Central Europeu, que pode ajudar Portugal a regressar aos mercados mas só isso, foi apresentada por muitos como o "fim da austeridade".

Criou-se uma espécie de dissonância cognitiva: de um lado, um problema orçamental que se tornara mais difícil de resolver; do outro, um discurso facilitista "antiausteritário". Estavam reunidas as condições para uma "tempestade perfeita".

Há uma semana, a propósito de outras discussões, lembrei que faz parte da natureza humana reagir primeiro emocionalmente e, depois, procurar argumentos para as emoções. Pior: a primeira reacção emocional bloqueia muitas vezes a capacidade de escutar todo e qualquer argumento que contrarie o instinto inicial. O que se passou em Portugal nestes dias foi exactamente isto. Apenas dois exemplos, de duas entrevistas. 

Uma é de Vítor Gaspar ao Diário de Notícias. Ao longo de quatro páginas, o jornalista só parece querer saber como é que o ministro vai lidar com a opinião pública em fúria, nunca procura conhecer o racional das medidas governamentais (Vítor Gaspar também não sai deste espartilho e só repete frases vazias). 

A outra é a de Abebe Selassie, o chefe de missão do FMI, ao PÚBLICO. Apesar de ser a primeira defesa inteligente e sustentada das medidas adoptadas, nenhum dos seus argumentos surge nos títulos escolhidos ou nos resumos feitos pelos outros órgãos de informação, tendo ido a preferência toda para frases que dão a ideia que o FMI se distancia dessas medidas, algo que o conteúdo da entrevista desmente categoricamente. 

Esta recusa sem sequer escutar argumentos faz parte, repito, do que somos como seres humanos, mas ela condiciona de forma gravíssima a possibilidade de voltar a chegar a um ponto interessante de consenso político e social. O que me preocupa não é a dissensão do PS: ela era preparada há muito, estava escrita nas estrelas. Como não me inquieta demasiado o fogo-fátuo do CDS, uma construção politiqueira e sem dimensão de Estado para conseguir a quadratura do círculo de estar ao mesmo tempo a favor e contra a austeridade. O que me preocupa é o estado de apoplexia do país. 

Este estado de apoplexia provocou uma espécie de "fechamento das mentes", de recusa de raciocínio. Um exemplo: estando aparentemente todos contra a solução da TSU, ninguém (ou quase ninguém) discutiu uma alternativa séria para ultrapassar o problema colocado pelo Tribunal Constitucional. Cortava-se antes no 13.º mês subindo o IRS? O tão temido "efeito recessivo" sobre o consumo seria ainda pior. E se se subisse o IVA? Idem. 

Devolviam-se então os subsídios aos funcionários e pensionistas? Nem com "mais tempo" (que vamos ter), nem com "mais dinheiro" (que também vamos ter via BCE) se conseguiria acomodar tal buraco nas contas públicas. Como correctamente assinalou Selassie: "Não há nenhuma bala mágica, não há uma única medida que não tivesse causado também debate e discussão. Se o IRS ou o IRC tivessem sido aumentados, as pessoas teriam dito: mas porquê o IRS, porquê o IRC? Se fosse o IVA também se queixariam. Qual seria a alternativa? E não vejo isso no debate".

Na discussão sobre a TSU também se formou uma estranha unanimidade. De repente toda a gente defende que um produto vai ficar mais barato (o custo do trabalho desce para os empregadores), mas que isso não terá qualquer impacto no consumo desse produto (ou seja, não se reflectirá nos níveis de emprego). Não imagino outro país do mundo onde esta unanimidade fosse possível. 

Outro ponto surreal da discussão é o da aparente unanimidade de que se podem fazer outros cortes nas despesas públicas - a mesma unanimidade que rejeita "cortes cegos" e protesta contra todos os cortes concretos, estejamos a falar de uma fundação, de um tribunal, de um túnel no Marão, de uma urgência ou de professores sem alunos para ensinar. O argumento eterno é o das PPP - as mesmas PPP por que muitos sufragaram em 2009, no tempo da euforia das SCUT e do "cheque-bebé". 

Eu também acho - e acho desde 2009, não desde ontem - que se têm de renegociar as PPP, mas não atiro areia para os olhos: o custo líquido das PPP rodoviárias em 2013 será de pouco mais de 500 milhões de euros, o pacote de medidas agora apresentado é de 4,5 mil milhões. Mas o pior é que não se poderiam cortar esses 500 milhões, já que o grosso da factura não são as "rendas excessivas", é mesmo o pagamento de auto-estradas que foram construídas e não deviam ter sido. Estão lá e, gostemos ou não, temos de pagá-las. Em contrapartida, neste ano de 2012 já se cortaram mil milhões nos custos da Saúde e 600 milhões nos da Educação, as duas maiores facturas do Estado. É pouco, mas sabemos a discussão que tem dado.

Podia continuar a dar exemplos. O problema não foi de comunicação. O problema também não é de estas medidas serem muito piores do que as alternativas, pois nem conhecemos as alternativas. O problema é que, ao contrário do que diz Vítor Gaspar na sua entrevista ao DN, já não existe consenso sobre a necessidade de corrigir as contas públicas e fazer sacrifícios. O Governo tem muita culpa nisso. E Portugal continua a ser Portugal - mais parecido com a Grécia do que com a Suécia.
http://jornal.publico.pt/noticia/14-09-2012/o-caldo-entornouse-e-isto-pode-nao-ter-remedio-25241049.htm


(Programa 'Saber do Povo', de Levi Moreira da Costa - Carlos Soutelo: 'O Soutelo Malha Bem')

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