«Mas agora estava reduzido a tomar caldos à força. Levava mais de uma hora a dar-lhe uma pequena tigela. Eu teimava. Ele recusava: «Estás a tornar-te insuportável! Assim não te posso aturar.»
Eu insistia sempre: só mais uma colherinha!
«Essa tigela parece o poço das Danaides!»
E continuava: «Todos temos as nossas razões. Tu tens as tuas. Eu tenho as minhas.»
Sabia a inutilidade de todos os esforços e só queria sossego. Tossia muito quando sentado na cama.
O doutor Magano voltou e achou-o na mesma; nem melhor nem pior.
Havia ainda uma esperança, mas muito, muito pequenina.
Os amigos vieram de longe, comovidos e aflitos. O Padre Magalhães e o Eduardo Oliveira quiseram chorar connosco. De Lisboa vieram o Mário Beirão, o Henrique Paços D'Arcos e o António Duarte. Era, outra vez, domingo. Incertos e ansiosos limitaram-se a olhá-lo da porta, de longe e a medo. Temíamos impressioná-lo.
Ele continuava distante... Houve um espaço de magoada contemplação de olhos marejados e respiração suspensa. Todos sentiram que seria o último adeus. Só o António Duarte, sempre optimista, confiava ainda. Queria levá-lo à Suíça.
Mas o Poeta escolhera um país mais distante.
A sua voz deixou de se ouvir e ficou a tosse a encher toda a casa.
Seguiram-se dias de imobilidade e silêncio. Sentimos que perdia as forças. No dia 12 de Dezembro, à tarde, notei que engolia o caldo em dois tempos. Alarmada, telefonei ao médico, que chegou no dia seguinte, de manhã.
Roubou-nos toda a esperança e deu uma só ordem: «Nem mais remédios, nem mais caldos. Ele só precisa de paz.»
Quando se despediu, desolado, o doente pronunciou distintamente: «Até amanhã.» Foi a última vez que ouvi a sua voz...
Nessa tarde disse um longo segredo. Movia os lábios e a sua mão espectral desenhava gestos no espaço. Terminou pondo um dedo nos lábios misteriosamente. Mas só ele pôde guardá-lo. Da sua boca não saiu qualquer som.
Depois da meia-noite a respiração começou a ser mais rápida - mas apenas ligeiramente mais rápida. A ausência de sofrimento era visível. Nem sede tinha!
Nunca mais mudou de posição. Não se mexeu durante um dia inteiro. E a atitude era a mais natural possível. A de quem tem sono e quer dormir: de costas e o braço direito por baixo da cabeça.
Vinte horas de dilacerante espera! Nenhuma alteração naquela aparência sonolenta.
No dia 14 era, de novo, domingo. Às nove e vinte da noite, com os olhos de toda a família, torturada e espectante, cravados nele, começou a respirar com intervalos espaçados, lenta e compassadamente. Sempre sem o menor sinal de sofrimento. Mais frouxo... mais devagarinho... mais baixinho... E cinco minutos depois tinha parado.... Ou parecia que tinha parado...
Recorri a um espelho para me certificar de que só nos restava a Saudade:
«E tudo passará... Mas a saudade
Não passará jamais. Há-de ficar
Porque ela é o Infinito e a Eternidade.»
Pascoaes tinha escolhido um pinheiro, em forma de lira, para fornecer as tábuas para o seu caixão. E ele espalhava no ar um aroma delicioso a resina e a pinho verde.
O António Duarte fez a mão e a máscara do Poeta. O Eugénio de Andrade leu os seus poemas. O Henrique Paço D'Arcos também, Chovia. Era o fim...
Pascoaes repousa no pequeno cemitério de S. João de Gatão, com o epitáfio que ele mesmo escreveu:
«Apagado de tanta luz que deu
Frio de tanto calor que derramou.»» in Fotobiografia "Na Sombra de Pascoaes" de Maria José Teixeira de Vasconcelos
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