14/07/12

Literatura - Um grupo de investigadores estrangeiros partiu à procura de Fernando Pessoa e encontrou um espólio de inéditos a ir desde a crítica ao salazarismo à prosa desconhecida de Álvaro de Campos, passando pelas milhares de folhas escritas guardadas religiosamente na Biblioteca Nacional!



«Arca de Pessoa revela material “para cinquenta anos de trabalho”

Um grupo de investigadores estrangeiros partiu à procura de Fernando Pessoa e encontrou um espólio de inéditos a ir desde a crítica ao salazarismo à prosa desconhecida de Álvaro de Campos, passando pelas milhares de folhas escritas guardadas religiosamente na Biblioteca Nacional.

Jerónimo Pizarro nasceu na Colômbia e vive hoje em Portugal por causa de Fernando Pessoa.  Numa sala da Biblioteca Nacional perante papéis em tom amarelo, escritos a lápis, caneta ou dactilografados rodeado pelo espólio do escritor, o investigador revela-nos que havia afinal mais do que uma arca onde o poeta depositava os seus escritos.

“Há muito muito material, é uma fonte de trabalho o para 40, 50 anos”, diz o professor da Universidade dos Andes, titular da Cátedra de Estudos Portugueses do Instituto Camões na Colômbia.

“É difícil esgotar a riqueza deste espólio. Há em todos os géneros, poesia, prosa…O plano é resgatar e reeditar o capital editorial da Ática, a primeira editora de Fernando Pessoa”, conta Jerónimo Pizarro, que acaba de coordenar com o italiano António Cardiello a publicação do inédito "Prosa de Álvaro de Campos". 

“O plano que temos é continuar a publicar o que Pessoa escreveu nos últimos cinco anos de vida. Isso significa dar a conhecer o muito que escreveu sobre esoterismo”, exemplifica.

Mas há mais. “Temos muitos textos de índole política, muito muito crítico da ditadura, do salazarismo, e que temos ainda que conhecer muito melhor os textos sociológicos e políticos de Fernando Pessoa entre 1930 a 1935”. 

Depois de já ter contribuído com oito volumes para a melhor compreensão da obra de Fernando Pessoa, Jerónimo Pizarro trabalha agora na edição de novos inéditos.

O espólio é uma espécie de puzzle do qual é preciso juntar as peças, e neste labirinto de criação, Pessoa nem sempre facilitou a vida a quem o estuda, conta Jerónimo Pizarro, que explica que o desafio a quem hoje estuda a obra não se coloca apenas em descobrir qual dos heterónimos está a escrever, mas também em decifrar a letra.

Guardado em mais de uma centena de caixas, o espólio de Fernando Pessoa está desde 2010 digitalizado e acessível, parcialmente, por internet através do site da Biblioteca Nacional.

Hoje esta ferramenta de trabalho facilita a investigação, até  porque no imenso espólio há folhas onde há ao mesmo tempo um aforismo de Álvaro de Campos ou um verso do Livro do Desassossego. Percorrer este mundo de Pessoa é um trabalho de detetive, já que escrevia em qualquer papel e em três línguas diferentes.

Jerónimo Pizarro teve a ajuda de outros pessoanos no trabalho de digitalização da biblioteca de Fernando Pessoa. Ao seu lado teve o argentino de ascendência italiana Patricio Ferreno; o italiano António Cardiello e canadiana Pauly Bothe, filha de um pai alemão e uma mãe irlandesa que trocou a vida no México por Portugal, há cinco anos, depois de ter aberto um livro de Fernando Pessoa . 
                               
O olhar de Pessoa cegou o italiano António Cardiello, que se cruzou com o poeta através das traduções de António Tabucchi e ganhou um novo amor. Está há oito anos em Portugal.

Há seis está Patrício Ferrero, que deu os primeiros passos no português através de Pessoa. Este pessoano diz ser mais fácil aprender uma língua do que entender o mundo de Fernando Pessoa.

Jerónimo, António, Pauly e Patrício juntam-se a outros nomes como o colombiano Jorge Uribe ou o americano Richard Zenith. Estrangeiros que são agora também portugueses por causa de Fernando Pessoa - o autor que não se esgota.

Na próxima semana pode ainda acrescentar imagem aos sons do espólio de Pessoa com a grande reportagem da Renascença V+.» in http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=30&did=70066

(Mariano Deidda - Fernando Pessoa, inédito)


(Fernado Pessoa - Poema do Menino Jesus - Alberto Caeiro) 




"Poema do Menino Jesus



Num meio-dia de fim de primavera


Eu tive um sonho como uma fotografia


Eu vi Jesus Cristo voltar à terra.


Veio pela encosta de um monte.


E era a eterna criança, o Deus que faltava.


Tornando-se outra vez menino,


A correr e a rolar pela relva


E a arrancar flores para deitar fora.


E a rir de modo a ouvir-se de longe.


Tinha fugido do céu.


Era nosso demais para fingir desegunda pessoa da Trindade.


Um dia, que Deus estava dormindo


e que o Espírito Santo andava a voar


Ele foi até a caixa dos milagres e roubou três.


Com o primeiro, ele fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.


Com o segundo, ele criou-se eternamente humano e menino.


E com o terceiro ele criou um Cristo e o deixou pregado numa cruz que serve de modelo às outras.


Depois ele fugiu para o sol


e desceu pelo primeiro raio que apanhou.


Hoje ele vive comigo na minha aldeia


e mora na minha casa em meio ao outeiro.


É uma criança bonita, de riso e natural.


Atira pedra aos burros.


Rouba a fruta dos pomares.


E foge a chorar e a gritar com os cães.


Nem sequer o deixaram ter pai e mãe


como as outras crianças.


Seu pai eram duas pessoas: um velho carpinteiro


e uma pomba estúpida, a única pomba feia do mundo.


E sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher, era uma mala em que ele tinha vindo do céu.


E queriam que justamente ele pregasse o amor e a justiça.


Ele é apenas humano,


limpa o nariz com o braço direito,


chapina as possas d'água;
colhe as flores, gosta delas,


esquece-as.


E porque sabe que elas não gostam
e que toda a gente acha graça,


ele corre atrás das raparigas
que carregam as bilhas na cabeça e levanta-lhes as sáias.


A mim, ele me ensinou tudo.


Ensinou-me a olhar para as coisas.


Aponta-me todas as belezas que há nas flores.


E mostra-me como as pedras são engraçadas


quando a gente as tem nas mãos e olha devagar para elas.


Ensinou-me a gostar dos reis e dos que não são reis.


E tem pena de ouvir falar das guerras e dos comércios.


Diz-me muito mal de Deus.


Diz que ele é um velho estúpido e doente.


Sempre a escarrar no chão e a dizer indecências.


E que a Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meias.


E o Espírito Santo coça-se com o bico;


empoleira nas cadeiras e suja-as.


Tudo no céu é tão estúpido como nas Igrejas.


Diz-me que Deus não percebe nada das coisas
que criou - do que duvido.


"Ele diz por exemplo que os seres cantam sua glória.


Mas os seres não cantam nada
se cantassem, seriam cantores.


Eles apenas existem e por isso são seres..."


Ele é o humano que é o natural.


Ele é o divino que sorri e que brinca.


E é por isso que eu sei com toda certeza que ele é o Menino Jesus verdadeiro.


E depois, cansado de dizer mal de Deus


ele adormece nos meus braços.


E eu o levo ao colo para minha casa.


Damo-nos tão bem na companhia de tudo


que nunca pensamos um no outro.


Mas vivemos juntos os dois


com um acordo íntimo,


como a mã0 direita e a esquerda.


Ao anoitecer, nós brincamos nas cinco pedrinhas do degrau da porta de casa.


Graves, como convêm a um deus e a um poeta.


É como se cada pedra fosse um universo


e fosse por isso um grande perigo deixá-la cair no chão.


Depois ele adormece.


E eu o deito na minha cama despindo-o lentamente


seguindo um ritual muito limpo, humano e materno até ele ficar nu.


E ele dorme dentro da minha alma.


Às vezes ele acorda de noite e brinca com os meus sonhos.


Vira uns de perna para o ar.


Põe uns encima dos outros.


E bate palmas sozinho sorrindo para o meu sono.


Quando eu morrer, filhinho, seja eu a criança, o mais pequeno.


Pega-me tu ao colo.


E leva-me para dentro da tua casa.


E deita-me na tua cama.


E conta-me histórias, caso eu acorde, para eu tornar a adormecer.


E dá-me os sonhos teus para eu brincar..."


(Alberto Caeiro)


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