Joana e Patrícia, de seus nomes. Joana tinha 16 e a Patrícia 15 anos de idade, ambas frequentavam o 8.º ano de escolaridade. Mas a escola não fazia parte dos seus planos imediatos de vida. Consideravam-se miúdas da moda, vestiam quase sempre roupas típicas de pronto a vestir juvenil, sapatilhas, calças com o mesmo corte, num estilo urbano e bastante agressivo. Nos adereços e penteados seguiam igualmente a mesma tendência. Um estilo de vanguarda e simultaneamente descontraído, que criava uma sensação de pertença a uma tribo mais alargada de jovens rebeldes e prontos para incorporar o que resta da espuma dos dias: malta cool.
Uma delas, a Joana, chegou mesmo a ser convidada para uma sessão fotográfica, através de um amigo comum, que a viu desfilar num bar da moda na cidade e que a considerou muito fotogénica. Posteriormente, tem sido convidada para outros eventos e já foi capa na promoção de uma coleção de roupa juvenil, num género de vestir em que se revia, com gangas rasgadas, maquilhagem muito escura e depressiva, onde ser jovem parece ser uma seca, a vida parece morte e a depressão saúde…
Já ambas tinham sido iniciadas no tabaco, álcool, drogas e sexo. Para elas a vida não tinha segredos em qualquer das suas dimensões perigosas. Pelo menos, era isso o que queriam aparentar, na escola, nos bares e discotecas que frequentavam. O que poderia alguém ensinar-lhes, se elas conheciam a face mais negra da noite, a versão mais oculta dos seres humanos, o lado errado das coisas, tudo o que se não deve fazer, uma exaltação dos amargos e obscuros recantos da vida... o resto, para elas, mais não era do que tédio e uma valente seca!
Na escola, embora frequentassem a mesma turma, durante as aulas trocavam mensagens escritas, numa vontade infinita de fintar a solidão que as unia. A ligação em rede em que todos vivemos, nos dias que correm, não encobre os receios de quebra de corrente de afetos, pois não é disso que se trata. É antes, uma enorme vontade de ter interlocutor, para partilhar o nada em que vivem, o seu vazio existencial, a sua demanda de afetos que nunca experimentaram e uma estranha rebeldia que mais não será do que uma prisão de paredes bem maciças, inexpugnáveis. E, nessa ilusão de corrente, de linha, de rede, até se criou uma linguagem muito própria, formada por abreviaturas e caracteres iniciais das palavras, para se teclar mais rápido e se não dizer nada de significativo, mas mais depressa, com a ilusão da omnipresença de alguém do outro lado, do estar sempre online, de feedback imediato.
Fui criado numa aldeia, em que um casal do lugar tinha telefone no seu lar, algo que se constituía então num verdadeiro luxo e os vizinhos davam esse número a familiares e amigos, para ligarem em caso de grande urgência. Eram autênticos telefones comunitários, mas a rede era mais assertiva e direcionada: comunicava-se para falar mesmo, havia uma mensagem, um conteúdo, um sentido na comunicação, um propósito bem definido, uma parcimónia de palavras fúteis, pois o recurso de comunicação era caro e não generalizado.
Será que podemos classificar como conversa efetiva, o envio de ícones e de caracteres estranhos, numa linguagem minimalista e desprovida de conteúdo e, não raras vezes, de sentido. Dois seres humanos fechados numa sala qualquer, entre quatro paredes, a simularem uma gama de comunicações e de sensações fictícias estranhas, tipo rir, chorar, cair, comer… tal poderá ser comunicação, mas será sempre vaga e desligada de raciocínio. Eis o drama da sociedade atual, está-se sempre em rede, mas pouco se comunica, se partilha, se interage, se relaciona… o mesmo se passava igualmente com a Joana e a Patrícia, numa rede de equívocos, de conversas ocas, de relações superficiais... mas, que lhes davam a sensação de conexão intemporal, em sincronia e constante.
Se um nosso amigo do facebook, inopinadamente, se coloca em estado triste, toda a gente tende a perguntar o porquê e a enviar mensagens de acalento, mas quase sempre, debalde… a partilha do sentimento não corresponde a um desabafo entre duas pessoas com ligações afetivas autênticas, logo não existe catarse, pois não se cura o que não se conhece e não se entende, percebe, ou se partilha cara a cara. A comunicação, assim, corresponde ao aumentar do vácuo, da depressão, da falta de senso, da dispersão, nunca se indo ao fundo dos problemas, das questões.
É como estar muito tempo a assistir a programas de televisão onde se vêm pessoas que não conhecemos, a interagir dentro de uma casa, encenando polemicas fúteis, revelando corpos jovens, musculados e tatuados, como o seu ser, artificial e fútil. Não são, nem de longe nem de perto, atores em palco, logo não é de Teatro que se trata. Nem sequer é um filme de amadores, pois o esforço de representação, com alguma elevação, é realmente nulo. Trata-se de mostrar vegetação humana em estado natural, sem ficção, a realidade torpe de seres ocos. As relações são superficiais, não há sequer tribo, existe uma rede de equívocos provocados ou não, por seres vazios de conteúdo, de afetos, de redes verdadeiras, numa ecologia relacional e de troca de afetos, verdadeiramente, inóspita e miserável.
Tudo isto vem a propósito das relações humanas, cada vez mais intermediadas por processadores e memórias cada vez mais rápidos, potentes e embutidos em interfaces, cada vez mais incorporadas nos nossos membros e cérebros. Temos a rapidez de processos e uma elevada potência de comunicação que, ainda não estão a ser correspondidos pela capacidade de trocar conhecimentos e afetos. A Joana e a Patrícia sofriam deste mal consubstanciado na interação da sociedade atual, ausência de inteligibilidade e de inteligência emocional.
Estaremos então numa época de regressão no domínio cognitivo e no domínio da inteligência relacional e emocional?... Sinceramente, acho que não! Trata-se, penso eu, de uma fase de adaptação a uma nova forma de existir, numa era em que o ser humano está a ser convidado a viver num ritmo superior ao natural, numa linguagem quase binária que não se coaduna com as nossas capacidades cognitivas e relacionais, bastante mais complexas e encadeadas.
Não há gerações superiores! Todas são reflexo dos valores que se transmitem, de umas para as outras. A nossa história não o desmente e comprova uma evolução tecnológica altamente acelerada dos últimos trinta anos. Nunca, em toda a nossa civilização, se evoluiu tanto em tão pouco tempo. Será que a nossa capacidade de integração e assimilação desse desenvolvimento entrou em debacle?... E se pudéssemos parar para pensar? Tal também não me parece possível, a máquina de desenvolvimento tecnológico já não se pode parar, entrou em fase de aceleração exponencial. Entretanto a Joana e a Patrícia continuam infelizes... a brincar às comunicações com a rede quebrada... pretendem ser famosas, no seu nada existencial... estão até a ponderar ser noivas de dois Jihadistas que lançaram um pedido de casamento através das redes virtuais, repentinamente, descobriram uma causa para as suas vidas!
Será que se pode retirar alguma moral disto tudo, ou a conclusão é que a moral já não existe, ou que se perdeu a noção de moral… algo que se pode reter pela constatação imediata é que a evolução relacional e emocional, parece estar ao invés da tecnológica e que a ética não se deveria desligar da evolução científica, pois a evolução poderá ser transformada em involução humana, num retrocesso civilizacional.
Mas e para terminar, a Joana e a Patrícia continuam agarradas ao seu dispositivo de comunicação móvel, seguem a novela da vida real na TV, vivem em profunda solidão, mas não percepcionam a sua situação, pois estão de tal forma presas à rede e às teias da solidão disfarçadas em likes e de estados de espirito traduzidos em bonecos animados intuitivos... a má notícia é que começamos a ficar rodeados por muita gente assim... vazia, mas sempre online! E depois, qualquer moda estúpida, poderá ser sempre a única causa de uma vida vazia!»
Cronica publicada em: http://birdmagazine.blogspot.pt/2015/02/a-rede-emparedada.html
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