«Pelos caminhos de Drave
Quando soubemos que um documentário sobre uma aldeia de xisto desabitada tinha esgotado em três semanas, pedimos boleia a um rebanho de cabras. E partimos de olhos e ouvidos bem abertos.
O sino da capela de Regoufe avisa que é uma da tarde quando as cabras começam a partir o gelo entre as pedras da encosta, à frente da aldeia. Vamos com elas, e Fátima e os seus dois cães fecham o rebanho, cuidando para que nenhum bicho arrepie caminho e regresse ao curral. Está um daqueles dias de inverno gloriosos: céu azul, algumas nuvens dispersas, frio de barrete e luvas. E nós já estamos a gostar desta reportagem que começou com uma gripe.
Doente em casa numa tarde de semana, a jornalista Sónia Calheiros saltava entre canais de televisão quando ficou suspensa nas imagens de umas montanhas a pedir adjetivos em correnteza. "Há quem julgue ser na Nova Zelândia", ouviu e não estranhou. Sabia que a trilogia O Senhor dos Anéis tinha sido rodada nos antípodas, num cenário assim magnífico, verde, verde. Foi então que João Baião lhe apareceu no estúdio da SIC, a achar piada ao que contava um dos convidados.
As montanhas ficavam perto de Arouca, vila a uma hora de carro do Porto e a três de Lisboa. Tinham sido cenário de filme, sim, mas do documentário Drave - Uma Montanha do Tamanho do Homem. E o realizador e dono da produtora Cimbalino Filmes não esperava que os primeiros mil DVD esgotassem em três semanas.
Se antes tivera dúvidas, João Nuno Brochado sentia-se feliz por ter dedicado quase um ano e meio a Drave, uma aldeia desabitada desde 2000, situada no fundo de um vale entre as serras da Freita e de São Macário. Chamam-lhe A Aldeia Mágica - é esse, aliás, o nome do percurso pedestre proposto pelo Geoparque, 4 quilómetros com partida em Regoufe. E nós, que sorte!, vamos conhecê-la na companhia de uma ex-educadora de infância que leva um rebanho comunitário a pastar por ali três ou quatro vezes por semana.
Vitela para o lobo mau
São umas oitenta cabras, agora penhascos acima. Fátima não as contou porque o seu número vai variando - depende se alguma pariu, por exemplo. É dela a maior quantidade, umas 42 ou 44, nem sabe; as restantes pertencem a duas vizinhas que com ela se revezam. "A última vez que contei tinha cinquenta e tais, entretanto o lobo matou umas quantas."
O lobo. Na televisão, Fátima comparou-o ?com o Estado Islâmico, exagerando na metáfora tal é a raiva "aos do ICNF [Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas] que largam para aí lobos ibéricos". Como quase não há saída sem lobo mau por perto, vale-lhe que os cães dão sinal. Max e Lira ladram de um jeito diferente e logo as cabras desarvoram, mas o prejuízo tem sido grande.
O ICNF paga por cada animal morto mas não paga o que os donos iriam lucrar no futuro nem as horas perdidas quando ficam para trás cabritinhos que é preciso alimentar a biberão. Fátima não se conforma. "Deviam pôr os lobos cercados. Até ia lá dar-lhes vitela!"
Não é raiva ao lobo - é vontade de sobrevivência, percebe-se ao ouvi-la contar que Regoufe já só tem duas dezenas de pessoas. Ela, com 52 anos, é das mais novas. E crianças? "Zero!" Os jovens saem para estudar e não voltam porque a única viabilidade económica da aldeia é o rebanho e nem toda a gente gosta de andar com cabras. Fátima é das que gostam. "Até já nos habituámos à chuva, o lobo é que não dá paz."
Regoufe foi uma aldeia com muito movimento, e nem é preciso recuar ao início dos anos 40, altura em que as minas de volfrâmio davam bom dinheiro a ganhar na região. Tem uma zona de várzea belíssima, compartimentada como é uso por aqui, com pequenos muros de pedra solta a dividirem as leiras. Há quem tenha várias leiras mas estão umas longe das outras, uma canseira. Nas décadas seguintes, os mais velhos ficaram a ver emigrar quem podia.
E chegaram os escuteiros
Se escrevemos sobre Regoufe é porque o que aconteceu a Drave não é muito diferente. Drave é mais pequena e só tinha três famílias que viviam da agricultura e, em tempos idos, do carvão. Não havia luz, gás ou água canalizada. E os acessos eram difíceis. De lá também foram partindo os jovens, eles para arranjarem um trabalho melhor e elas maridos.
Em 1971, a aldeia alegrava-se com o último nascimento. Em 1993, quando já só lá morava um casal, chegou uma linha telefónica e energia solar. Até que, há quinze anos, partiria o último habitante, Joaquim Martins, viúvo e cansado do isolamento. Algumas das casas e currais de xisto ameaçavam ruína, os campos eram grandes para um homem, as ruas só se enchiam de vozes a 15 de agosto, dia da Senhora da Saúde, a padroeira da capelinha.
Fátima assistiu a toda a história da aldeia. De longe quando esteve no Porto a tirar o curso de educadora de infância, mais de perto ao decidir trabalhar na região de Regoufe, onde nasceu. Em 2003, já com Drave desabitada há três anos, também viu como chegavam os escuteiros da IV Secção, rapazes e raparigas entre os 18 e os 22 anos, os Caminheiros, que fizeram negócio com uma das famílias e começaram a reconstruir o seu terço da aldeia. Hoje, são deles oito casas, oito terrenos, a eira, o moinho e o espigueiro.
Foi logo em 2003 que João Nuno Brochado conheceu Drave. Nesse verão, ajudou a fazer o telhado da futura cozinha da Base Nacional da IV do Corpo Nacional de Escutas, carregando às costas as lajes de xisto num vaivém muito parecido com o que iria filmar dez anos depois, a convite do dirigente Paulo Natividade. Desde então, todos os fins de semana há escuteiros em Drave. O trabalho é contínuo - de manutenção (de telhados, de pontes), de construção (carpintaria), de espiritualidade (acreditam que ela é favorecida em contacto com a natureza).
Graças a Deus que é quinta-feira e estamos no inverno e a uns dias das férias do Carnaval. Os treinos para o Ultra Trail da Serra da Freita ainda vêm longe e à semana são raros os entusiastas do BTT e os "turistas de salto alto". Chamem-nos egoístas com razão - queremos ter Drave só para nós. Gostamos de imaginar como era o quotidiano desta aldeia embalados apenas pelo som da água a correr com força montanha abaixo e pelos balidos das cabras.
O frio, a rudeza, a simplicidade
As explicações de Fátima, que aqui aponta a adega, ali a eira, acolá a entrada dos homens na capela caiada - de branco como já foi o Solar dos Martins, morada dos "grandes" da aldeia -, parecem dar vida ao lugar. Quando a "pastora" nos incita a entrar nas casas recuperadas pelos Caminheiros percebemos porque Drave está parada no tempo mas não abandonada.
Para lá das portas, de madeira grossa e com cravelhas no lugar de chaves, houve mil cuidados em manter as traças originais. As casas estão adaptadas ao dia a dia dos escuteiros, há beliches estreitos, mesas e bancos corridos, tudo de madeira, e um forno a lenha a contrastar com uma instalação elétrica rudimentar (que era alimentada a geradores, entretanto furtados), mas o princípio foi o de deixá-las apenas tão cómodas como eram antigamente. "Queríamos que estes jovens que estão a ir para adultos sentissem o frio que se passava, a rudeza, a simplicidade", há de dizer-nos Paulo Natividade.
Os dias, por aqui, querem-se espartanos e próximos da natureza. Se ainda é possível beber água diretamente do rio (juntam-se ali três, na verdade) é porque a IV Secção faz parte da organização Leave No Trace. Para não deixar vestígios, os detergentes e os champôs devem ser biodegradáveis e nunca pode haver poluição direta do rio, das cascatas ou das lagoas. "Estão a ver? Isto é culpa do Paulo!", ri-se Fátima, mostrando o fundo de uma chávena de plástico, cheio de sarro, antes de a usar.
Sentamo-nos num caminho de lajes de xisto que aqueceram ao sol. Devem ser três da tarde. Dali a uma hora vai ser preciso começar a juntar as cabras que se espalharam pela leira do outro lado da aldeia e pelo monte sobranceiro onde ainda há muitas bolotas de sobreiro. Os bichos pelam-se por bolotas, mais ainda por penhascos. "É da natureza delas", lembrara Fátima à saída de Regoufe.
Na hora e picos que levámos para chegar a Drave, num ritmo de passeio que deu para beber água das nascentes, espreitar abrigos de mineiros e encher os olhos com a paisagem, nós seguíamos pela estrada (primeiro um estradão, mais à frente um caminho de xisto) e elas pelo cume das montanhas. À cata de bolotas, pois claro.
Benditos 'drones'
Ser cabra-bicho deve ser coisa boa, mas levantarão elas a cabeça para apreciar as montanhas "de pele lisa e ondulada" descritas por Afonso Reis Cabral, em O Meu Irmão (Prémio Leya 2014?
O romance começa no Tojal, que "é perto de Arouca e longe de tudo o resto". A aldeia, com catorze casas de xisto, dez abandonadas, três de um casal mais filho, e a décima quarta da família do narrador, só existe na cabeça do escritor. "Pus lá um pezinho na imaginação", ri-se, quando lhe telefonamos a tirar teimas. Mas podia ser Drave ou mesmo Cando, em plena serra da Freita, onde já moraram trinta pessoas e agora sobram quatro, duas mães e dois filhos adultos.
A situação geográfica é outra se pensarmos que o Tojal-inventado fica muito perto de Ponte de Telhe, essa sim com direito a nome no mapa, escola básica e promessa de bons banhos no rio Paivô (que na região se pronuncia Paivó). Já as montanhas que "parecem uma mulher sem roupa, mas em verde" são as mesmas. E a inaptidão para descrevê-las, de que se queixa ironicamente o escritor, também é a mesma.
O melhor será pedir ajuda às fotografias publicadas nestas páginas e ao documentário que nos trouxe a Drave. O filme esgotou mas já está a ser preparada uma 2.ª edição, a lançar a 7 de março, em Lisboa. Além de contar a história da aldeia e de acompanhar o trabalho dos escuteiros, a voz do ator e encenador António Durães leva-nos até às montanhas que a escondem, num inebriante voo de pássaro só possível com câmaras instaladas em drones.
Não é assim tão estranho termos desejado ser cabras e agora inventarmo-nos aves. Estas montanhas são especiais, são muito diferentes do resto do País, comunga connosco o realizador que delira com o Vale do Paivô, à volta de Drave, e com o Portal do Inferno, do outro lado da aldeia. "Parece um manto que caiu ali e ficou cheio de rugas."
Só iremos ouvir uma metáfora igualmente bonita no dia seguinte, quando visitarmos Cando. "Estão a ver aquela vagazinha?", aponta António Alves, 47 anos, neto do dono das antigas pedreiras de xisto junto à aldeia. "Logo atrás é Drave, onde estiveram ontem."
Matar saudades do mar
É sexta-feira, um dia de inverno rigoroso: céu cinzento, gelo na estrada e neve a cair miudinha. Por aqui os montes são "vagazinhas", a lembrar o mar lá ao longe. Mesmo vê-lo só ao longe quebra o isolamento, percebe-se quando vamos até à aldeia da Castanheira, também na serra da Freita, e um dos doze habitantes, Manuel Tavares, 68 anos, a maioria deles emigrado em França, promete: "Quando o nevoeiro alisar vê-se bem a queda de água [a Frecha da Mizarela]. E até o mar!"
O mar merece exclamação. Já na véspera, vendo-nos a repetir "Isto é lindo!", "As montanhas são lindas!", a emoção a comer-nos o vocabulário, Fátima confessara as saudades do mar. Quando apertam, lá vai ela matá-las no seu carro; mas logo regressa aos montes que tão bem conhece.
A "pastora" dava uma bela guia da natureza, arriscamos e recebemos uma gargalhada de volta. "Mais tarefas? Às vezes, trabalho tanto que até me arde o coração. É porcos, é galinhas, é cabras, é o restaurante! [O Mineiro, à entrada de Regoufe]. Por acaso, pensei que era giro criar um programa de pastor por um dia para turistas, mas as outras duas senhoras não quiseram."
"Giro" não será a palavra certa para descrever o que sentimos quando uma cabrita ainda nova, com menos de um ano, resolve parir no regresso à aldeia. Nenhuma das três assistiu ao parto porque ela se deixou ficar para trás, mas posso escrever que pegar num cabritinho acabado de nascer é emocionante. Obrigada, Sónia.
Pelos caminhos de Drave
O QUE FAZER
Casa das Pedras Parideiras - Um filme em 3D ajuda a perceber um fenómeno de granitização único no mundo que aqui também pode ser visto "ao vivo" - Castanheira, Albergaria da Serra T. 256 484 093 Seg-dom 9h30-12h30, 14h-17h
Minas de Regoufe - Complexo mineiro Poça da Cadela, em ruínas. ?O volfrâmio, que era conhecido por "ouro negro", deu muito dinheiro a ganhar na região - Regoufe, Covelo de Paivô
PR Aldeia Mágica - Percurso pedestre entre Regoufe e Drave, por caminhos tradicionais. O início é pedregoso e são 4 km para cada lado. Mas faz-se bem e a paisagem tudo perdoa - geoparquearouca.com
PR Nas Escarpas da Mizarela - Percurso pedestre com partida e chegada no Parque de Campismo do Merjual (serra da Freita), por caminhos de montanha. São 8 km e o nível de dificuldade é alto - geoparquearouca.com
O QUE COMPRAR
Doçaria - Em bola ou à fatia, o pão de ló da casa A. Teixeira Pinto é afamado. E as suas pedras parideiras são uns deliciosos biscoitos de nozes - Burgo, Arouca T. 256 944 246
Mel - As abelhas de António Azevedo, da Quinta do Lobo, produzem mel de urze ou de eucalipto. O de urze é escuro, denso e tem um sabor forte - Pode comprá-lo na Casa das Pedras Parideiras
ONDE FICAR
Casas de Aldeia - Dois T1 e um T3, com forno e lareira, numa pequeníssima aldeia de xisto em plena serra da Freita - Cando, Cabreiros T. 91 751 5506
Hotel S. Pedro - Um três estrelas renovado, com uma receção que faz concorrência ao posto de turismo do Geoparque - Av. Reinaldo Noronha, 24, Arouca T. 256 944 580
Quinta da Vila - A única dificuldade será escolher entre os quartos dos lagares e os das piscinas - Lugar da Vila, Alvarenga T. 91 852 8478 ?ou 91 459 7826
ONDE COMER
Caetano - Foi nesta casa que começou a tradição dos bifes de Alvarenga. A carne é arouquesa e o molho é feito só com o seu sangue - Trancoso, Alvarenga T. 256 955 150
Casa no Campo - Posta de vitela arouquesa grelhada num ai ou outros pratos por marcação. - Espinheiro, Moldes T. 91 425 2284
O Mineiro - Cabrito no forno, vitela assada e arroz de frango, de frente para a várzea. Produtos caseiros cozinhados pela "pastora" Fátima Martins - Regoufe, Covelo de Paivô T. 96 011 0195» in http://visao.sapo.pt/pelos-caminhos-de-drave=f810728
(Aldeias - Arouca - Drave)
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