20/12/22

Amarante Literatura - Teixeira de Pascoaes, aborda a temática do Natal na sua magnífica obra telúrica e transcendental: "Marânus".




"O Nascimento


Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha,

Rompendo a sombra etérea do crepúsculo!

A paisagem tornou-se mais estranha,

Mais cheia de silêncio e de mistério!

Dormem ainda as árvores e os homens,

E dorme, em alto ramo, a cotovia…

E, se ergue já seu canto, é porque sonha

julga ver, sonhando, a luz do dia!


E, pelos negros píncaros, a estrela

É divino sorriso alumiante.

Oh, que esplendor! Que formosura aquela!

É lírio de oiro aberto! É rosa a arder!


Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha,

Tão virginal, tão nova, que parece

Sair das mãos de Deus, a vez primeira!


E como, sobre os montes, resplandece!


Persegue-a o sol amado... No oriente,

Alastra um nimbo anímico de luz.

E a antiga dor das trevas, suavemente,

Ondula, em transparência e palidez.


Aí vem a estrela, alumiando a serra!

E os olhos encantados dos pastores

Voltam-se para a estrela... E cá na terra

Há mágoas e penumbras, a fugir...


Como ela voa, cintilando e rindo

Aos penhascos agrestes e desnudos!


E os pastores, atentos, vão seguindo

A direcção etérea do seu voo...


E a quimérica estrela deslumbrante

Parou sobre a capela, onde a Saudade

Agasalhava o Deus recém-nascido,

Com seu manto de amor e claridade.

E, amparando-o nos braços, lhe estendia

Os seios maternais. A criancinha

Mamava. E a Saudade lhe sorria,

Num enlevo, num êxtase sagrado.


A primavera, errante no Marão,

Veio cobrir de lírios e de rosas

O berço do Menino. E veio o outono,

E vieram ermas sombras dolorosas.

Logo, o outono rezou a sua prece


De cinzas e de bruma. E o lindo sol,

Entrando pelos vidros, aparece,

Junto ao pequeno berço. E toda a luz

Do céu veio com ele! E veio a noite.

Vieram as avezinhas, que deixaram,

No recôndito ninho, abandonados,

Os filhos ainda implumes. E cantaram

Em louvor do Menino e da Saudade.


E Marânus sentia, mais alegre,

Tornar-se vida, amor, fecundidade,

A sua antiga e mística tristeza.


E, ao ver a própria alma da sua raça

Criar a Virgem Mãe dum novo Deus,

Eis que à flor dos seus lábios esvoaça

O sorriso supremo da vitória.


E a Saudade, num casto e luminoso

Gesto de amor, tomando, novamente,

O Menino nos braços, o embalava.

E sobre ele inclinava docemente

A fronte aureolada. E uma canção,

Que era feita de todas as cantigas,

Mais num murmúrio brando de oração


Que em voz alta, cantava. E o Deus menino,

Com os olhos abertos, num espanto,

Recebia do mundo a clara imagem

E o seu nubloso e misterioso encanto...


Também o bom pastor, a quem Marânus

Havia prometido o Nascimento,

Sentia em seu espírito surgir,

Envolto num astral deslumbramento,

Estranho e novo ser, que dissipava

O seu velho crepúsculo interior,

Onde um fantasma, trágico e nocturno,

Aparição do medo e do terror,

Furibundo, reinava, desde os séculos!


O Menino crescia, como a aurora

Que, sendo esparso vulto de mulher,

Na linha do horizonte, que descora,

Lembra a auréola dum Deus anunciado…


Em volta dele, as coisas se animavam

Dum sentido mais belo e verdadeiro;

E a sua alma oculta desvendavam,

Como na luz primeira da Existência.


Mundo transfigurado! Ó terra santa!

Ó terra já divina e toda erguida

Àquela altura ideal da Eternidade,

Mais uma vez, a morte foi vencida!


Alguns dias passaram. E Marânus

Disse que ia partir à sua Esposa,

E que se entregava ao casto amor, tão puro,

Desta leal paisagem montanhosa.

E, chorando, abraçava-a, e repetia

Que tinha de partir; mas, dentro em pouco,

Por uma clara noite, voltaria.


E a trágica Saudade, sufocada:


«Eu bem conheço a voz que te chamou!

Voz que ilumina as árvores e as nuvens,

E que meu ser antigo transformou

Neste meu ser anímico e perfeito.»


E, mais serena e resignada: «Vai!

Cumpre a sua vontade. É teu destino...»


E beijando-o nos lábios, e tomando

Em seus braços de imagem o Menino,

Subiu a um alto píncaro escarpado,

De onde ela, por mais tempo, contemplasse

O esposo e companheiro bem amado.


E, sozinha, de pé, sobre um rochedo,

Disse-lhe um longo adeus.

E, já distante,

Marânus, ansioso, para trás

Volvia a face triste, a cada instante.

E parava, cismando…

Mas, ao longe,


O corpo da Saudade, vago e incerto,

Perdia-se, no ar que se turbava...


Anoitecia. A serra era um deserto.

E Marânus seguia o seu caminho."


Teixeira de Pascoaes, in 'Antologia Poética'


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