
Sou e sempre fui professor a tempo inteiro e dedicação exclusiva e ainda tenho a paixão por trabalhar na sala de aula com os meus alunos. Sou também pai de uma aluna que frequenta a escola pública. Nunca fui militante de nenhum partido (embora não consiga imaginar uma alternativa ao sistema democrático partidário) e não me move, por isso, como diz invariavelmente o primeiro-ministro, sempre que ocorre uma manifestação contra a sua política, uma intenção de luta partidária ou sindical, como se tal comportamento fosse um crime de lesa-democracia. Fiz a minha formação académica superior (nove anos: licenciatura, estágio no ramo educacional e mestrado) na Universidade de Coimbra e considero-me defensor do rigor e da exigência na educação. É justamente em nome desses valores que desejo aqui desmistificar o conteúdo e a forma das políticas educativas do Ministério da Educação (ME).
1. Esta redentora ministra da Educação optou por legislar em catadupa sem nunca ouvir os professores. Desautorizou as escolas e execrou os seus docentes, desprezou os pareceres do consagrado Conselho Nacional de Educação e abjurou as opiniões de todas as associações profissionais de professores. Ainda que mal pergunte: existe algum país democrático onde um Governo tenha desejado e conseguido instituir uma reforma em qualquer das suas áreas vitais sem a participação maior ou menor dos seus protagonistas? Alguém acredita que seja possível e legítimo implementar em Portugal reformas, por exemplo, nos sectores da Saúde e da Justiça à revelia das opiniões de médicos, enfermeiros, juízes e advogados?

3. Este ME engendrou, unilateralmente, um novo diploma de gestão escolar que limita a democracia directa nas escolas públicas. Na prática, suspeito que a autonomia das escolas continuará a não passar de mera retórica. Entretanto, aumentam perigosamente os poderes do Director (antigo presidente do Conselho Executivo), que deixará de ser votado em eleições directas maioritariamente pelos seus pares. O Conselho Pedagógico passa a ser nomeado pelo Director e terá apenas poderes consultivos, facto que pulveriza o princípio do primado das questões pedagógicas e científicas sobre as questões administrativas (será esta a estratégia admirável forjada pelo ME para abrir caminho às tais lideranças fortes?!). Os professores perdem a maioria no Conselho Geral (antiga Assembleia de Escola) - que, entre outras funções, elege o Director - em nome de uma suposta abertura inovadora das escolas às autarquias e à comunidade local. Isto apesar de todos sabermos que esta velhíssima e até hoje quase impraticável aspiração esteve sempre contemplada no sistema ainda em vigor: com efeito, a ainda actual Assembleia de Escola já integra vários elementos da autarquia e da comunidade local que, como a realidade tem demonstrado à saciedade, são em regra incapazes ou estão indisponíveis para participarem de forma mais empenhada e criativa nas escolas. Por outro lado, os agrupamentos de escolas passam também a depender do poder dos autarcas, os quais agem muitas vezes movidos por interesses arbitrários e são não menos vezes desprovidos de sensibilidade, de cultura e de conhecimentos científicos e pedagógicos para interferirem de forma francamente positiva nos destinos destas instituições.
4. O novo estatuto do aluno decretado quase a meio do ano lectivo determina que, em nome do combate ao insucesso escolar, os estudantes dos ensinos Básico e Secundário não reprovem por faltas injustificadas. Doravante, estes irão poder comparecer nas aulas quando lhes aprouver e depois fazer sucessivas provas de recuperação nas disciplinas onde forem acumulando excesso de faltas. A ideia é peregrina, e é o mínimo que apetece dizer: desresponsabiliza os alunos e os seus encarregados de educação; potencia actos de indisciplina e de total absentismo que constituem já o drama cada vez mais insuportável de tantas escolas; responsabiliza e desautoriza os professores e até parece não compreender que tais alunos só providos de inspiração divina poderão reunir condições mínimas para alinhavarem as respostas às questões enunciadas nas provas atrás mencionadas.
A maior parte da legislação produzida por este ME tem apenas um propósito: aumentar rapidamente o sucesso educativo através da burocratização sistemática das escolas (como se educar significasse burocratizar); manter os alunos todo o dia fechados em escolas vedadas e, em demasiados casos, nada aprazíveis, bem como converter estes locais em "fábricas" capazes de produzir em massa e com menos dinheiro um sucesso educativo formatado e desalmado - como se o complexo sistema educativo das escolas portuguesas pudesse ser decalcado por decreto pelas cartilhas tecnocráticas que determinam a organização de uma qualquer empresa capitalista...
Mas, como é depois possível que a melhoria do sucesso educativo vislumbrado nas estatísticas possa coincidir com o sucesso científico, educacional, técnico e artístico intrínseco obtido por cada aluno? Decididamente, esta é uma questão que os amanuenses do ME, a sua infalível ministra e o rigoroso engenheiro Sócrates desprezam e devolvem aos professores. De facto, esse não é um problema digno de ocupar os espíritos dos governantes portugueses, os quais vivem tragicamente divorciados do mundo real e são desprovidos de qualquer imaginação e sentido prospectivo.
Entretanto, enquanto estes se entretêm com as suas diáfanas jogadas políticas, os professores lá vão continuando a desenvolver estoicamente o seu trabalho de campo em condições cada vez mais insuportáveis - turmas mais numerosas; alunos mais desmotivados e mal-educados; apoio psico-pedagógico insuficiente prestado aos alunos necessitados; professores com horários de trabalho formais mais repletos, mais níveis, mais turmas, mais alunos e menos horas semanais para leccionar a cada turma; burocracia inútil e esquizofrénica (torrentes de reuniões, mais grelhas, matrizes, relatórios, actas, planificações, planos educativos e uma panóplia de outros documentos inenarráveis para elaborar); nenhum tempo para pensarem e planificarem as aulas; nenhum tempo para actualização científica; tempo e paciência esgotados para descodificarem a forma, o conteúdo e o alcance metafísicos das sucessivas leis evacuadas pelo ME; serões perpétuos passados a elaborarem e corrigirem resmas de fichas de avaliação; ambiente escolar mais arrebatado e, em certos casos, violento; indisponibilidade de tempo para a família.
Quando estará este Ministério da Educação disponível para reflectir e debater com os professores as questões de fundo e disfunções da escola pública (currículos, programas, práticas pedagógicas, a obscena burocracia em que as escolas soçobraram, qualidade e caminhos do ensino profissional, obviamente, processos de formação e avaliação de professores, etc.)? Até quando estarão os professores dispostos a consentir que a arrogância e o folclore pseudo-reformista das políticas educativas deste Governo abastardem irremediavelmente as suas vidas e penhorem o futuro do País?
Diria para terminar, à maneira de síntese, que esta política de educação imposta num tempo de crise desperta-nos para uma máxima fundamental e urgente (antes que seja tarde...): é preciso educar a política ("esta politica"... escrita em minúscula), é urgente que os políticos sejam educados. A política em democracia não é uma arte do poder, à maneira maquiavélica, mas é um exercício de rigor e de diálogo, é uma vivência de cidadania.» in Educare.
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Brilhante artigo este de um professor bem esclarecido. Subscrevo em pleno todas as pertinentes considerações nele contidas. Quanto à pergunta que o precede, parece-me evidente a resposta, mas a Tutela não quer ver...
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