22/02/18

Arte Pintura - Num texto publicado no diário britânico “The Guardian”, a pintora portuguesa, Paula Rego, revelou as intromissões e comentários que ouviu enquanto pintava o retrato oficial do ex-Presidente da República, Jorge Sampaio.



«Paula Rego e o retrato de Sampaio que apanhou Portugal em fundo

Num texto publicado no diário britânico “The Guardian”, a pintora portuguesa revelou as intromissões e comentários que ouviu enquanto pintava o retrato oficial do ex-Presidente da República, Jorge Sampaio.

Desta vez não deu para o termómetro da controvérsia subir uns graus. As confissões de Paula Rego no autorretrato escrito para o “The Guardian”, a dias da inauguração da exposição “All Too Human: Bacon, Freud and a Century of Painting Life”, que integra obras suas a par das de uma série de outros grandes nomes na Galeria Tate Britain, em Londres, não foram tão longe que deixassem o assunto cair da mesa para o chão, onde tudo dá azo à balbúrdia formigante dos que se estraçalham por migalhas. Os condimentos, no entanto, estavam todos lá. Tínhamos o retrato de um antigo Presidente da República cuja figura, poderia dizer-se, se entrega mais facilmente à aguarela do que à pintura a óleo, tínhamos uma pintora com que se pode contar para não filtrar tudo o que pensa ao ponto de, no fim, se confundir com tantos artistas que parecem não pensar nada, e tínhamos, finalmente, a frase que sugeria outra coisa: “Fazer o retrato de Jorge Sampaio quase me matou”.

Se Paula Rego diz que só pinta pessoas quando lhes parece que elas aguentam a mudança de plano, da vida para a arte, quando emprestam alguma matéria às histórias que os quadros procuram contar - mesmo se a pintora só as descobre no fim -, acrescenta que, para o fazer, pode até dispensar a ligação emocional com o retratado. Ora, no caso de Sampaio, ela garante que essa ligação existia então e mantém-se até hoje. “Ele é um homem muito bom. Ou, pelo menos, foi muito bom para mim. Ainda somos amigos.”

Contudo, a história que o quadro conta talvez tenha ficado para segundo plano devido aos constrangimentos que se puseram à pintora quando aceitou fazer o retrato. Paula Rego revela as dificuldades e uma série de contratempos que não podia ter antecipado: “Começámos a trabalhar num estúdio do último rei de Portugal [a pintora refere-se à Casa do Regalo, mandada construir por D. Carlos I]: ele fora um pintor muito bom e tinha um estúdio no que é hoje a residência oficial do Presidente. Fazer o retrato tornou-se quase impossível - as pessoas entravam e diziam ‘aquele braço não ficou bem’ ou ‘O nariz dele não é assim’. No final eu disse: ‘talvez devêssemos ir para outro lado’. Acabámos por ir para uma sala repleta de armários cheios de copos de vidro e trabalhei muito arduamente, fiquei instalada num hotel próximo e ia deitar-me sempre exausta.”

A descrição oferece mais flores à paródia do que a um embaraço num testemunho que se pretende servir dignamente à posteridade. O curioso é que a petit histoire, neste caso, se não macula a imagem de Sampaio, deixa à sua volta esse zumbido tão característico de certa saloiice arrogante, esse perfume empertigado que se cheira nos corredores do mais pequeno poder, e se distingue à légua como portuguesa. Esta ‘pincelada’ basta para pôr a fita a desenrolar-se nas nossas cabeças, e assim vemos o desfile desses narizes vindo espiar o trabalho de Paula Rego, e, ato contínuo, produzindo sentenças, sentindo-se habilitados a sugerir correções. 

A arte é, entre nós, esse consultório onde o paciente logo tem lições para dar ao médico. Imagine-se se não só estes, mas os eletricistas, os canalizadores ou serralheiros, se além de serem chamados a prestar os seus serviços, ainda tivessem que levar com os reparos e as intromissões de bem intencionados amadores. No caso de Paula Rego, cuja obra goza já do tipo de prestígio mundial que deveria protegê-la destes incidentes, é ainda mais tocante imaginar a entourage presidencial a cirandar pelo estúdio convencida de que o estatuto não a colocava acima da premência dos seus reparos. A solução foi esconder-se num quarto dos fundos, assim esquivando-se à turba dos nossos críticos de arte. É o tipo de cena que haveria de divertir Eça de Queirós, um dos escritores que mais vezes serviu de influência à pintura de Paula Rego. Portanto, e como se vê, é o eterno retorno a vir cobrar à portuguesa a sua taxa.

Exposição na Tate

“All Too Human: Bacon, Freud and a Century of Painting Life”, a mostra que inaugura dia 28 deste mês e ficará patente até 27 de agosto, integra uma série de obras de artistas que “tenham capturado a experiência intensa de viver através da pintura”, segundo o museu, e inclui trabalhos de Walter Sickert, Stanley Spencer, Michael Andrews, Frank Auerbach, R. B. Kitaj, Leon Kossoff e Jenny Saville, entre outros.

Quanto ao auto-retrato, desta vez em palavras, é um testemunho valioso em que a pintora portuguesa uma vez mais avança pistas para que o seu trabalho seja encarado de forma desassombrada, explicando a evolução do seu método de trabalho, recuando à infância, e ao primeiro retrato que fez: “Quando tinha nove anos fiz um desenho da minha avó. Foi o primeiro de um vivo. Ela estava ali sentada a coser - não sabia que eu a estava a desenhar. Parecia-se com ela. Costumava trazer pintos nos bolsos e, às vezes, até crias de coelho. Mantinham-na quente. Ela gostava deles. Às vezes levava-os para passear.”

Como sempre em Paulo Rego a vida ganha um efeito de sobressaturação. As cores são mais fortes, os aspetos mais ordinários são agarrados com uma tal firmeza que parecem mexer-se dentro dos seus contornos, não morrem, não ficam comportados e serenos, pousando, mas adquirem um efeito de radiância. E não se trata de captar a alma, nem esse género de triunfantes banalidades que tantos artistas repetem para que o seu silêncio ou mistério não seja encarado como um vazio, mas há uma pulsão vital a que Paula Rego aprendeu a ser fiel. Assim, ela diz-nos como muitas vezes o que importa é puxar da vida esses traços que lhe devolvem a sua semelhança, e confiar neles para segurarem o fôlego de tudo o resto. Para o ilustrar, a pintora recorre a um episódio que se passou com o poeta T.S. Eliot. Um artista incumbido de o pintar ter-lhe-á dito: “Vou capturar a tua alma.” Ao que Eliot retorquiu: “Deixa lá a minha alma e concentra-te para que a minha gravata fique bem.”

A pintora conclui assim o seu autorretrato lembrando o cuidado que um artista aprende ao olhar a vida tentando retratá-la. “Quanto mais o fazes, melhor te tornas a olhar, e essa é uma disciplina que é fundamental qualquer que seja a forma como faças o teu trabalho.”» in https://sol.sapo.pt/artigo/601667

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