«A CAMINHO DO ABISMO
Cada vez mais me convenço de que, de tanto fugirmos de uma crise política e da possibilidade de haver novas eleições, não sei até que ponto estamos a incubar uma crise muito maior e muito mais profunda. A verdade é que nas semanas em que a Moody"s mandou em Portugal, todos os cuidados foram poucos e o PS levou um Orçamento aprovado para casa única e exclusivamente porque não o ter levado significava um descalabro nacional. Mas agora, cada dia que passa, estamos cada vez mais encurralados num destino sem ter destino, num futuro sem ter futuro.
Quem assistiu ao debate do Orçamento, pôde ver até que ponto ele representou um momento particularmente sombrio da vida parlamentar. O discurso inicial do primeiro-ministro não gerou um átomo de entusiasmo na bancada do PS. Pretendendo ser mais um exercício de optimismo habitual em José Sócrates, foi pronunciado com um semblante carregado, sem ânimo nem convicção. Manuela Ferreira Leite, ouvida em silêncio respeitoso (quem lá esteve, sabe que foi assim) por toda a oposição e pelo PS, perguntava, perplexa: "Como é que o senhor pôde falar este tempo todo sem nunca se referir ao problema mais grave do país, o da dívida e do descontrolo orçamental?". Se tinha alguma coisa preparada de antemão, certamente não a usou, porque se percebia o genuíno espanto com o que José Sócrates dissera.
Depois, começou a cena habitual e Sócrates animou-se no confronto politiqueiro, falando pela enésima vez da Madeira. A Lei das Finanças Regionais, leia-se o "dinheiro para Jardim", foi talvez mais falado em todo o debate por parte do tandem Sócrates-Teixeira dos Santos-Lacão, do que qualquer outra coisa. Parecia que se estava em campanha eleitoral. A irritação com o refrão governamental foi tanta que Jerónimo de Sousa abriu a sua primeira intervenção virando contra o primeiro-ministro uma sua imprecação sobre a Madeira, pedindo que a oposição fosse explicar a um habitante de Bragança porque razão se dava mais dinheiro à Madeira, que era "rica". Jerónimo de Sousa, interpelando Sócrates, indignado, retorquiu-lhe que fosse ele mesmo explicar a um habitante de Bragança o que é que tinha feito por Bragança em vez de estar a atacar o povo da Madeira. A Madeira foi o único e monotemático lubrificante do discurso governamental, tudo o resto foram as habituais picardias de Sócrates (e as aborrecidas imprecações de Lacão), tudo sem qualquer ânimo ou réstia de fulgor.
Havia um enorme cansaço em tudo aquilo. Louçã estava particularmente baço e Portas voltou aos tempos de Manuel Monteiro e pediu uma redução dos salários dos políticos. O CDS-PP e o PSD, que garantiam a passagem do Orçamento pela abstenção, tinham, como se deve prever, um bathos absoluto. O Orçamento é um documento pouco sério, que em nada inverte a política de desastre dos últimos anos, e que a Unidade Técnica de Apoio Orçamental, uma entidade independente do Parlamento, no seu relatório, mostra como este está cheio de truques de desorçamentação e como, mudando de critérios de um ano para o outro, impede fazerem-se as comparações devidas. O ministro das Finanças, que sabe o sarilho em que o país está metido, esteve sempre de cara fechada e foi o único que, nas suas intervenções, ainda permitia algum vislumbre da realidade. Pelo contrário, José Sócrates gabava-se da performance portuguesa na crise: os últimos a entrar na crise, os primeiros a sair da recessão técnica, número sobre número melhor do que os congéneres europeus, para concluir que a "economia portuguesa resistiu melhor à crise do que as suas congéneres europeias", assim mesmo. Os seiscentos mil desempregados, os milhares de pequenas empresas falidas estavam nalgum remoto lugar que não naquela "economia" de que falava.
O problema é que já ninguém acredita no primeiro-ministro, que foi, várias vezes, e vindo de diversas bancadas, de forma mais ou menos eufemística, chamado de mentiroso, já sem qualquer reacção. Nem ele reage, nem ninguém mexe uma palha por ele, tornou-se habitual. Ninguém, naquela sala, era capaz de antever qualquer esperança em nada. O Governo, percebe-se, está encurralado e sem fulgor, apesar de ter poucos meses, e a oposição, que não deseja eleições, e em particular o PSD, que não está preparado para elas, sente-se impotente. Impotência, é isso mesmo, é a palavra que melhor descreve o enorme desânimo que atravessa a política portuguesa. Impotência e cansaço.
Os motivos próximos são dois, actuando cada um de forma diferente, mas com resultados semelhantes. Um, foi o cataclismo nos mercados que coincidiu com as vésperas da apresentação do Orçamento. Toda a gente percebeu que, mesmo que se passe os dias a dizer que Portugal não é a Grécia, a possibilidade de uma crise "grega" tornou-se um possibilidade demasiado assustadora. A realidade da nossa situação económica, e em particular da nossa dívida, entrou pela primeira vez pela porta grande, para todos verem, e, mesmo os que negam o problema (e o continuam a negar), não podem deixar de ficar assustados. A outra causa, que continua em curso, são as revelações sobre as tentativas de controlo da comunicação social em ano de eleições, que atingem o âmago do poder da Casa de Sócrates.
O efeito de deslegitimação política é cada vez maior. Sócrates tem todos os dias mais coisas para explicar e cada vez mais dificuldade em fugir a fazê-lo. A paralisia política do Governo mete-se pelos olhos dentro. A crise económica e social alastra. A percepção pública do papel da justiça vai desde a suspeita de que existem protecções inexplicáveis, à do conflito aberto entre diferentes instâncias, e decisões contraditórias. É difícil tudo estar pior, mas sei lá se para a semana está pior. Assim não vamos lá. Repito: cada vez mais me convenço que, de tanto fugirmos de uma crise política e da possibilidade de haver novas eleições, estamos a incubar uma crise muito maior e muito mais profunda.
(Versão do Público de 13 de Fevereiro de 2010.)» in Abrupto.
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Palavras sábias do Dr. Pacheco Pereira, para memória futura...
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