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23/09/13

Arte Literatura - O poeta e ensaísta António Ramos Rosa, de 88 anos, morreu cerca das 14h de hoje, no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, onde estava internado desde quinta-feira com uma pneumonia, disse ao Expresso uma sobrinha do escritor.

António Ramos Rosa, poeta, na Residência Faria Mantero, em Lisboa em 2005

«Morreu António Ramos Rosa

Tinha 88 anos, e uma vasta obra na poesia, ensaio e tradução. Nos últimos anos desenhou rostos de mulheres. António Ramos Rosa, algarvio, morreu esta tarde em Lisboa.

O poeta e ensaísta António Ramos Rosa, de 88 anos, morreu cerca das 14h de hoje, no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, onde estava internado desde quinta-feira com uma pneumonia, disse ao Expresso uma sobrinha do escritor.

Gisela Ramos Rosa disse ainda que o tio já tinha sido internado recentemente, mas recuperara, regressando à residência Faria Mantero, um lar para artistas onde residia há vários anos.

Ramos Rosa tem uma "obra multifacetada, embora predomine a poesia. Foi um exímio tradutor e ensaista", disse ao Expresso o poeta Victor Oliveira Mateus.  

Do seu círculo de amigos mais próximo - e da geração mais próxima da dele - fizeram parte os escritores "Vergílio Ferreira, Casimiro de Brito, João Rui de Sousa e Maria Teresa Horta", acrescenta Victor Oliveira Mateus.

Ramos Rosa, também "apoiou alguns nomes das gerações seguintes com quem manteve relações de proximidade. Foi o caso de António Carlos Cortez, Maria Teresa Dias Furtado e eu próprio", acrescenta Victor Oliveira Mateus.

Contactado pelo Expresso, António Carlos Cortez, recorda que em 2003, teve "oportunidade de organizar e prefaciar o livro "Os animais do sol e da sombra. Quando terminei tive a percepção clara de que Ramos Rosa era um poeta da metalinguagem". "Mas isso não lhe retirou nenhuma leveza nem nenhuma naturalidade", acrescenta.

Na perspetiva de António Carlos Cortez "morreu, talvez, o último representante de uma geração de ouro da poesia portuguesa. Homens nascidos nos anos 10 e 20 do século XX, como é o caso de David Mourão-Ferreira, Carlos Oliveira e Mário Cesariny" [entre outros].

Poema do funcionário cansado 

António Ramos Rosa nasceu em Faro em 17 de Outubro de 1924. Em 1945 participou na formação do MUD Juvenil. Ao longo do tempo manteve sempre a sua atitude crítica em relação ao Estado Novo e, em 1970, recusou-se a receber o Prémio Nacional de Poesia da Secretaria de Estado de Informação e Turismo atribuído a "Nos Seus Olhos o Silêncio".

Em o "Poema do Funcionário Cansado", escrito em pleno Estado Novo, lê-se: " Sou um funcionário apagado/ um funcionário triste/ a minha alma não acompanha a minha mão". É esta "capacidade imaginativa verbal raríssima, esta atenção real" que fazem com que Ramos Rosa tenha "uma obra ímpar", diz António Carlos Cortez.

Cortez destaca um outro e último aspeto no "caminho artístico de Ramos Rosa. Desenhou rostos com um traço leve e cósmico", que testemunham uma constante busca de "harmonia e conciliação dos elementos".

"Grito Claro", o seu primeiro livro, foi publicado em 1958. Foi Prémio Pessoa em 1988.  Três anos depois, em 1991, foi nomeado Poeta Europeu da Década pelo Collége de L'Europe.

No dia em que comemorou 74 anos, em 2003, a Universidade da sua terra natal, atribuiu-lhe o grau de Doutor Honoris Causa. 

O poeta era casado com Agripina Costa Marques, autora de vários de livros, e pai de Maria Filipe Ramos Rosa. Ramos Rosa convidou a escritora e grande amiga Maria Alberta Menéres para madrinha da sua única filha.» in http://expresso.sapo.pt/morreu-antonio-ramos-rosa=f831965#ixzz2fl0vGkqD


"Não posso adiar o amor" - António Ramos Rosa



"Não Posso Adiar o Amor

Não posso adiar o amor para outro século 
não posso 
ainda que o grito sufoque na garganta 
ainda que o ódio estale e crepite e arda 
sob montanhas cinzentas 
e montanhas cinzentas 

Não posso adiar este abraço 
que é uma arma de dois gumes 
amor e ódio 

Não posso adiar 
ainda que a noite pese séculos sobre as costas 
e a aurora indecisa demore 
não posso adiar para outro século a minha vida 
nem o meu amor 
nem o meu grito de libertação 

Não posso adiar o coração 


António Ramos Rosa, in "Viagem Através de uma Nebulosa"

16/08/13

Arte Literatura - O Dr. Pacheco Pereira brinda-nos com alguns escritos de Guerra Junqueiro, tão incrivelmente atuais, que nos fazem lembrar que Portugal é Futebol, Fátima e o nosso Fado de sempre, que já Camões tão bem descreveu...



«APRENDER COM GUERRA JUNQUEIRO

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. (...) 

Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro. Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País. 

A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas. 

Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.» in http://abrupto.blogspot.pt/2013/08/aprender-com-guerra-junqueiro-um-povo.html


Conta-mEncanto - Canção Perdida (Guerra Junqueiro)


"Canção Perdida
Escrito por G. Junqueiro / L. P. Oliveira.
LETRA: Guerra Junqueiro (adaptação)
MÚSICA: Luís Pedro Oliveira


Alguém de mim se não lembra    
Nas terras d´além do Mar.    
    
Ó Morte, dava-te a vida    
Se tu lha fosses levar.    
    
O meu Amor escondi-o    
Numa cova ao pé do Mar.    
    
Morre o Amor  vive a Saudade    
Morre o Sol, olh´ó Luar.    
    
--- solo ---    
    
Quem dá ais ao Rouxinol    
Lá para as bandas do Mar ?    
    
É o meu Amor, que na cova    
Leva as noites a chorar.    
    
Ó meu Amor dorme, dorme    
Na areia fina do Mar,    
    
Que em antes da Estrela D´Alva    
Contigo m´irei deitar.     
    

--- solo --"

07/07/13

Amarante Literatura - ANABELA BORGES (excerto de um conto, a publicar na minha antologia “Até ser Primavera”, em outubro… quase pronto! , com a Pastelaria Studios Editora)



«ANABELA BORGES (excerto de um conto, a publicar na minha antologia “Até ser Primavera”, em outubro… quase pronto! , com a Pastelaria Studios Editora):

O passado? – que isto do passado não é uma tábua rasa, não é uma linha contínua, tem lisuras e arames farpados, nós, laçadas e altos e baixos, e tem cortes com abismos e buracos negros. E já passou, não nos deixemos enganar. O tempo não é um arame esticado. 

Por isso é que acontece constantemente sermos sobressaltados por uma dessas irregularidades. E são coisas que, passadas, podemos não estar arrependidos de as termos feito, apenas podemos estar tocados pelas marcas que nos deixaram por serem acontecimentos marcantes – resíduos do passado. 

O tempo, às vezes, pode ser cruel como um rio desvairado, que transborda, a arrastar as veias do mundo, a roupa dos afogados, os desperdícios que apanha pelo caminho; pode passar por ruas e por cima das pontes e pode entrar-te em casa. 

Malogro era o som da contagem dos dias em crescendo, o revés no caminho.

ANABELA BORGES» in  https://www.facebook.com/photo.php?fbid=475182962576083&set=a.186361621458220.43721.100002531506939&type=1&theater&notif_t=photo_comment_tagged


Escritora Anabela Borges [breve apresentação biobibliográfica]

20/06/13

Arte Literatura - “Tabacaria” é o poema de Fernando Pessoa mais citado nas diferentes redes sociais, revela um projeto do SAPO Labs em parceria com a Universidade de Lisboa, hoje lançado.


«“Tabacaria” é o poema de Fernando Pessoa mais citado na Internet

“Tabacaria” é o poema de Fernando Pessoa mais citado nas diferentes redes sociais, revela um projeto do SAPO Labs em parceria com a Universidade de Lisboa, hoje lançado.

Fernando Pessoa, nascido há 125 anos, é, nas palavras dos responsáveis pelo projeto, “o poeta português mais conhecido dentro e fora de Portugal, [e] é também provavelmente o mais citado”, afirma o comunicado do portal SAPO.

“’Tabacaria’ é o poema mais citado, nomeadamente os versos ‘À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo’, lê-se na nota.

Esta conclusão pode ser consultada no sítio “O Mundo em Pessoa”, que faz “a recolha automática de citações de Fernando Pessoa, ortónimo e heterónimos, a partir das redes sociais”, explica o mesmo comunicado.

Através deste sítio na Internet pretende-se “mostrar quais as frases e versos de Fernando Pessoa que mais inspiram os seus leitores de todo o mundo", mas também "conduzir todos aqueles que usam as palavras de Pessoa até ao seu texto original, ampliando o número de leitores e o conhecimento da sua obra”. Segundo a mesma fonte, “nos últimos sete dias foram recolhidas quase 500 citações”.

Pessoa nas redes sociais

“Sempre que é citado um texto de Fernando Pessoa no Twitter ou em páginas públicas do Facebook, ‘O Mundo em Pessoa’ identifica e mostra essa mensagem num interface próprio. Para saber se um texto é uma citação da obra de Fernando Pessoa recorre-se a arquivos da obra do poeta disponíveis online, com os quais são comparados os textos do post”, explica a mesma nota.

Em http://fernandopessoa.labs.sapo.pt os utilizadores “podem ver as citações mais recentes, à medida que são identificadas, optando por consultar o último dia, semana ou mês”.

Também é possível “filtrar os resultados por heterónimo e aceder ao top de poemas mais citados nos últimos 30 dias”. Utilizando este critério, o poema "Tabacaria", de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, foi o mais citado nas redes sociais no último mês, à data do lançamento do projecto. O segundo poema mais citado é da série "O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro, outro heterónimo do autor de “Mensagem”.

Pessoa, um poeta contemporâneo

O investigador e estudioso da obra de Fernando Pessoa, Richard Zenith, realçou recentemente à Lusa que grande parte do interesse em torno de Fernando Pessoa se deve ao facto de o poeta “ser muito mais nosso contemporâneo que a maioria dos escritores nascidos no século XIX”.

“Parte do barulho em redor de Pessoa tem a ver com o facto de ele ser muito mais nosso contemporâneo que a maioria dos escritores nascidos no século XIX”, disse o investigador norte-americano, distinguido com o Prémio Pessoa 2012.

O interesse pela obra de Pessoa tem a ver também com “a particularidade da sua visão do mundo, assim como a maneira de escrever que o aproxima do mosso tempo, e é significativo que grande parte da sua obra tenha sido conhecida na segunda metade do século XX e no atual”, acrescentou o investigador, que tem publicado vários textos inéditos do autor de "Mensagem".

Fernando Pessoa (1888-1935) publicou poucos textos em vida, tendo a maior parte da sua obra sido publicada na segunda metade do século XX, e atualmente, continuam a surgir inéditos.

O autor, além de produzir poesia, que assinava com seu nome, criou vários heterónimos, nomeadamente Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Bernardo Soares, entre outros, que produziram variada poesia e prosa.» in http://noticias.sapo.pt/nacional/artigo/tabacaria-e-o-poema-de-fernando-_5699.html


"Tabacaria

Não sou nada. 
Nunca serei nada. 
Não posso querer ser nada. 
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. 

Janelas do meu quarto, 
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é 
(E se soubessem quem é, o que saberiam?), 
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, 
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, 
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, 
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, 
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, 
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. 

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. 
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, 
E não tivesse mais irmandade com as coisas 
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua 
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada 
De dentro da minha cabeça, 
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu. 
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo 
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, 
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. 

Falhei em tudo. 
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. 
A aprendizagem que me deram, 
Desci dela pela janela das traseiras da casa, 
Fui até ao campo com grandes propósitos. 
Mas lá encontrei só ervas e árvores, 
E quando havia gente era igual à outra. 
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar? 

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? 
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! 
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! 
Génio? Neste momento 
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, 
E a história não marcará, quem sabe?, nem um, 
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. 
Não, não creio em mim. 
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! 
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? 
Não, nem em mim... 
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo 
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando? 
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas - 
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, 
E quem sabe se realizáveis, 
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? 
O mundo é para quem nasce para o conquistar 
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. 
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. 
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, 
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. 
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, 
Ainda que não more nela; 
Serei sempre o que não nasceu para isso; 
Serei sempre só o que tinha qualidades; 
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta 
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, 
E ouviu a voz de Deus num poço tapado. 
Crer em mim? Não, nem em nada. 
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente 
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, 
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. 
Escravos cardíacos das estrelas, 
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; 
Mas acordámos e ele é opaco, 
Levantámo-nos e ele é alheio, 
Saímos de casa e ele é a terra inteira, 
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. 

(Come chocolates, pequena; 
Come chocolates! 
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. 
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come! 
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! 
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho, 
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) 

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei 
A caligrafia rápida destes versos, 
Pórtico partido para o Impossível. 
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, 
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro 
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas, 
E fico em casa sem camisa. 

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas, 
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, 
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, 
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, 
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, 
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, 
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -, 
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado. 
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco 
A mim mesmo e não encontro nada. 
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. 
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, 
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, 
Vejo os cães que também existem, 
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, 
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) 

Vivi, estudei, amei, e até cri, 
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. 
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, 
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses 
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); 
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo 
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente. 

Fiz de mim o que não soube, 
E o que podia fazer de mim não o fiz. 
O dominó que vesti era errado. 
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. 
Quando quis tirar a máscara, 
Estava pegada à cara. 
Quando a tirei e me vi ao espelho, 
Já tinha envelhecido. 
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. 
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário 
Como um cão tolerado pela gerência 
Por ser inofensivo 
E vou escrever esta história para provar que sou sublime. 

Essência musical dos meus versos inúteis, 
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, 
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, 
Calcando aos pés a consciência de estar existindo, 
Como um tapete em que um bêbado tropeça 
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada. 

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. 
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada 
E com o desconforto da alma mal-entendendo. 
Ele morrerá e eu morrerei. 
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos. 
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, 
E a língua em que foram escritos os versos. 
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. 
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente 
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, 
Sempre uma coisa defronte da outra, 
Sempre uma coisa tão inútil como a outra, 
Sempre o impossível tão estúpido como o real, 
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, 
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. 

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), 
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. 
Semiergo-me enérgico, convencido, humano, 
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. 

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los 
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. 
Sigo o fumo como uma rota própria, 
E gozo, num momento sensitivo e competente, 
A libertação de todas as especulações 
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto. 

Depois deito-me para trás na cadeira 
E continuo fumando. 
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. 

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira 
Talvez fosse feliz.) 
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. 

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). 
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica. 
(O dono da Tabacaria chegou à porta.) 
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. 
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo 
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu."

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa


(Fernando Pessoa por Joao Villaret - "Tabacaria")

22/05/13

Arte Literatura - "A Morte do Diabo" - a opereta cómica inacabada, recentemente descoberta pela estudiosa da obra de Eça de Queirós Irene Fialho, entre o espólio da música de Augusto Machado na Biblioteca Nacional - vai ser publicada a 4 de junho pela Editorial Caminho.

Descoberta opereta cómica de Eça de Queirós

«Descoberta opereta cómica de Eça de Queirós

"A Morte do Diabo" apresenta Satanás tão entediado com o Inferno que decide ir com os seus demónios até ao Chiado. É uma opereta, inacabada e recentemente descoberta, que será editada a 4 de junho.

"A Morte do Diabo" - a opereta cómica inacabada, recentemente descoberta pela estudiosa da obra de Eça de Queirós Irene Fialho, entre o espólio da música de Augusto Machado na Biblioteca Nacional - vai ser publicada a 4 de junho pela Editorial Caminho.

Irene Fialho disse ao Expresso que se trata de uma opereta criada no contexto do Cenáculo, as tertúlias literárias que Eça de Queirós frequentava na casa de Jaime Batalha Reis, da qual encontrou a partitura, sem qualquer menção de título nem dos autores.

Composta em 1869 por Augusto Machado, a opereta com libreto de Eça de Queirós e Batalha Reis permanecia anteriormente desconhecida, apenas se sabendo da sua existência por referências deixadas pelos seus autores em alguns textos.

Irene Fialho diz que foi a correspondência com alguns versos escritos por Batalha Reis, num artigo sobre Antero de Quental, que a ajudaram a identificar o libreto de "A Morte do Diabo".
Um registo pouco conhecido em Queirós

"Embora tenha um título um pouco estranho, é uma ópera cómica", refere a estudiosa, sobre a obra que revela um registo pouco conhecido em Queirós: o verso cómico.

"O Diabo está no Inferno muito aborrecido, com os seus demónios, e decide que o sítio se tornou tão pelintra que seria preferível irem para qualquer outro, nem que fosse o Chiado", recorda Irene Fialho.

Este é o ponto de partida do libreto, que constitui a primeira hora da opereta, à qual não foi dada continuidade pelos seus autores.

Parte da música foi aproveitada para a opereta "O Sol da Navarra", que chegou a ser apresentada no Teatro da Trindade.

Os excertos recentemente descobertos de "A Morte do Diabo", na obra a publicar, são enquadrados por textos de Irene Fialho, Mário Vieira de Carvalho e José Brandão.» in http://expresso.sapo.pt/descoberta-opereta-comica-de-eca-de-queiros=f808741#ixzz2U2OgiJYz



 (Os Maias, A Corrida de Cavalos)

19/05/13

Arte Literatura - Prefácio de "SobreViver", pelo Poeta Joaquim Pessoa.



«UMA POESIA CORAJOSA

SobreViver é um livro que interroga, se interroga, nos interroga, e
que confronta a vida e a morte, num mundo onde nada morre, tudo se transforma. Miguel Almeida começa por se interrogar: “Como explicar a morte / E a falta de sentido da vida?”. A vida como supremo bem, a morte como fim de tudo, parece ser esta a ideia fundamental do autor, nas dúvidas e nas incertezas. E parece-me que nas certezas também, sobretudo porque, neste homem, existe um outro, o escritor, o poeta que quer saber o sentido da vida, saber do seu percurso enquanto “água que corre”. Provavelmente, em busca da “perspectiva total do todo” pode o poeta ser enganado, ludibriado por uma dimensão humana que ele próprio quer ultrapassar para romper limites, iniciar ou reiniciar viagens onde possa atingir e percorrer territórios que estejam para lá da emaranhada selva das perguntas.


O que ser? O que preferir?, sendo nós impotentes na escolha, como se ela estivesse já determinada, essa “sentença que nos espera, uma pena que a vida tem para cumprir”. E como se a vida fosse um sonho, a solução é fugir-lhe talvez através do amor, de um sonho alheio, tendo consciência de que a única certeza é também a única dúvida: “ Hoje estou aqui, / Na Terra / Mas amanhã /Quem o saberá?”.

Esta é uma obra que obedece a uma perspectiva e a um sentimento existencialistas. Necessariamente uma obra onde todas as angústias existenciais existem ou, diria melhor, permanecem, e onde o poeta para além de se/nos interrogar, dialoga consigo próprio:

“O que vais ser?

Não sei, sei lá!
Não o sabes, sabes lá?!
Não, não sei.
Não sabes, é claro que sabes
Não sabes, como ninguém o pode saber.”

E fica sem resposta, uma resposta que a si mesma se interroga:
“Quantos são os que quiseram ser o que são, / E quantos, sendo aquilo que agora são / Nunca foram aquilo que algum dia desejariam ser?”

Todo o texto do livro é um desfiar do novelo intrincado de perguntas que o poeta a si mesmo formula em nome da nossa existência, da nossa vida quotidiana,da nossa vontade, do nosso futuro. É, de certa maneira, não o Livro do Desassossego, mas um livro de desassossego. “E vives procurando / A dor dos outros, que sentida fazes tua /Num sonho alheio, por onde foges à vida”. Como um desengano, um enorme e doloroso desengano para o qual Miguel Almeida não se coíbe de fixar uma solução individualmente comprometida: “(…) por tal engano / Mais vale então morrer, /Que viver assim, / (N)a vida toda, (n)um (des)engano.”

Por outro lado, o autor, apesar da consciência de que numa vida passageira só quase há lugar para perguntas e mais perguntas inquietas e sem resposta (O Sentido da vida), encara essa mesma vida como uma luta permanente “para chegar a saber quem é”.

Sempre tive para mim que a grande poesia está inevitavelmente perto da filosofia, sendo por vezes muito difícil destrinçar a qual dos campos pertencem, exactamente, os versos. Eduardo Lourenço, perante a questão da existência de um pensamento filosófico português, sustenta que onde ele é mais evidente é no discurso dos poetas.

Miguel Almeida é um poeta-filósofo que faz do ponto de interrogação a sua arma, o motor para avançar no seu tempo, no nosso tempo, sempre em busca de respostas que sabe não existirem cabalmente, mas que, ao formular as suas perguntas, ao levantar as suas questões (e as nossas, entenda-se) mesmo deforma retórica, são uma forma de abanar um certo conformismo genético de todos nós, de colocar o leitor em luta com o poema ou, melhor dizendo, com as ideias,as inquietações e as dúvidas que este levanta e suscita.

Mais do que um livro de sentimento, SobreViveré um livro de pensamento. Logo, um livro inquieto e incómodo, não acomodado à escrita branca, tão em moda na poesia portuguesa dos últimos anos, aquele tipo de escrita da qual Giovanni Papini disse não ser poesia, mas casca e serradura de poesia. Não é um livro em que predomine a imagética ou a construção metafórica, um livro de “inspiração”. É um livro de “respiração”, de quem constrói uma poesia agarrada à vida, ao ser, ao estar, ao permanecer. Não se procurem as “lindas imagens” nas páginas de SobreViver. Essas, cabe-nos a nós, os seus leitores, criá-las em função dos desafios que o poeta nos coloca. Esta é uma poesia que, mais que sugerir, diz. E também deixa claro que Miguel Almeida é um poeta que faz muita falta no panorama da literatura portuguesa, é uma voz carregada de individualidade colectiva e, por isso, não encontro significativos paralelos em relação ao seu discurso. Já tinha ficado impressionado com o autor, quando há algum tempo adquiri e li de um fôlego o seu excelente Templo da Glória Literária, excepcional sobre todos os pontos de vista, mas um livro diferente na sua construção, da obra que estamos a analisar.

O autor revela-se, cada vez mais, um poeta de discurso sólido, criativo, empenhado perante a vida, com uma poesia que se pensa a si mesma e que pensa cada um de nós, entre os quais o poeta se encontra incluído. Poeta que não hesita em se (nos) perguntar, como uma criança grande: “E se fôssemos imortais e vivêssemos para sempre?”. Para além de retórica, a pergunta é traquina. Miguel Almeida sabe bem que “para viver há uma séria exigência: continuar a ser criança”.

O lirismo do poeta é muito contido, mais suave que doce, de uma emoção racional e nele, também, a palavra “útero” tem o tamanho do mundo. Dele, nasce o homem, mas também a liberdade e o conhecimento, e a liberdade do conhecimento, a escolha e a dúvida e, inevitavelmente, a poesia. A vida é mais plena fora do corpo, esse “corpo limitado pelos anos e pelas maleitas que ele traz, / um corpo que nos obriga a pensar outra vez no nosso corpo / agora de uma maneira menos existencial, mas mais essencial”. Para o poeta, como para quase todos nós, a vida é uma luta em que também o corpo participa arduamente(“Para nascer, para viver e para evitar ter que morrer”).

Miguel Almeida sente mais com o pensamento do que pensa com o sentimento e, na sua racionalidade, está a génese da sua poesia. Vê e observa com os “olhos da mente”.

Poeta assumidamente existencialista, através da sua poesia elaborou para a vida uma receita corajosa:

“Se não fores ousado e arrojado,
Se não assumires o risco de querer ser,
Um derrotado exemplar, para que serve a vida?
Se não for mais que uma oportunidade desperdiçada”.
Para o poeta, “a vida é como é, / Não é como deveria ser”. E “Todos somos escravos/ E senhores da vida”.

Correria o risco de poder escrever um texto demasiado longo para a função de analisar e apresentar esta obra, e sei que não o devo fazer por diversas razões, sobretudo porque, ao lê-la, o leitor fará igualmente o seu juízo que, ainda que diferente, poderá ser tão certo e tão legítimo quanto o meu. Quero apenas acrescentar o que poucas vezes se faz na abordagem introdutória a um texto literário: que vale a pena ler sem pressas este livro, mastigá-lo, degustá-lo, retirar dele o prazer de se confrontar com cada poema, dar-lhe luta, até. Porque a luta do leitor com o poema é uma luta consigo mesmo, que o obriga a soltar a coragem de se interrogar. E interrogar-se é criar “histórias de valentia ou cobardia”. Porque, como nos lembra o poeta, “Aqui, / Neste mundo,/ As pessoas / Já não são / Aquilo / Que fingem ser”.

SobreViver é uma grata possibilidade de leitura de uma escrita adulta, séria, desafiante. “Que nisso”, o poeta “procura ser excepcional”.

Joaquim Pessoa» in

Página no facebook do livro "SobreViver:

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=532975903421916&set=a.175549152497928.49676.100001285343098&type=3&theater

31/01/13

Literatura - As mortes na fogueira, as perseguições e as torturas praticadas em nome da defesa de fé transformaram a Inquisição num dos mais negros períodos históricos, para conhecer no livro "História Geral da Inquisição Portuguesa, 1536-1821"!



«Os horrores da Inquisição

As mortes na fogueira, as perseguições e as torturas praticadas em nome da defesa de fé transformaram a Inquisição num dos mais negros períodos históricos. Para conhecer no livro "História Geral da Inquisição Portuguesa, 1536-1821". 

É um dos mais negros períodos históricos, assinalado nos manuais com milhares de vítimas - na maior parte dos casos, mortas na fogueira - em nome da defesa da fé e da Igreja. Em Portugal, a Inquisição começou a funcionar em 1536, em Évora, onde a corte residia, e marcou o império durante quase três séculos.

Perseguições, torturas... a verdadeira dimensão dos horrores do Santo Ofício é agora recordada num livro que passa em revista o contexto que lhe deu origem e permitiu evoluir, "sem esquecer", como assinala a Esfera dos Livros, que o edita, "as histórias dos homens que formavam este órgão e as suas vítimas - cristãos-novos, feiticeiros, bruxas e outros hereges - que questionavam os dogmas ou a ordem social instituída".

Em vésperas de publicação, "História Geral da Inquisição Portuguesa, 1536-1821" é uma obra dos historiadores José Pedro Paiva e Giuseppe Marcocci, baseada numa pesquisa exaustiva de arquivos e documentação.

Veja, em antecipação, algumas das gravuras que o livro reproduz:


Ler mais: http://expresso.sapo.pt/os-horrores-da-inquisicao=f783739#ixzz2JavZ2CxT


29/10/12

Cidade de Penafiel - Terminou hoje em Penafiel o festival literário ESCRITARIA, que homenageou o escritor António Lobo Antunes. “Não é meia noite quem quer”, ultimo livro do escritor, foi apresentado em Penafiel!



«Lobo Antunes homenageado na Escritaria

Terminou hoje em Penafiel o festival literário ESCRITARIA, que homenageou o escritor António Lobo Antunes. “Não é meia noite quem quer”, ultimo livro do escritor, foi apresentado em Penafiel. Durante três dias, a cidade transformou-se num livro aberto...» in http://www.jornalaberto.com/index.php?option=com_content&task=view&id=2307&Itemid=14




(Escritaria 2012)


(Escritaria Diga António teatro de rua)


(Antonio Lobo Antunes MediaPart)

14/07/12

Literatura - Um grupo de investigadores estrangeiros partiu à procura de Fernando Pessoa e encontrou um espólio de inéditos a ir desde a crítica ao salazarismo à prosa desconhecida de Álvaro de Campos, passando pelas milhares de folhas escritas guardadas religiosamente na Biblioteca Nacional!



«Arca de Pessoa revela material “para cinquenta anos de trabalho”

Um grupo de investigadores estrangeiros partiu à procura de Fernando Pessoa e encontrou um espólio de inéditos a ir desde a crítica ao salazarismo à prosa desconhecida de Álvaro de Campos, passando pelas milhares de folhas escritas guardadas religiosamente na Biblioteca Nacional.

Jerónimo Pizarro nasceu na Colômbia e vive hoje em Portugal por causa de Fernando Pessoa.  Numa sala da Biblioteca Nacional perante papéis em tom amarelo, escritos a lápis, caneta ou dactilografados rodeado pelo espólio do escritor, o investigador revela-nos que havia afinal mais do que uma arca onde o poeta depositava os seus escritos.

“Há muito muito material, é uma fonte de trabalho o para 40, 50 anos”, diz o professor da Universidade dos Andes, titular da Cátedra de Estudos Portugueses do Instituto Camões na Colômbia.

“É difícil esgotar a riqueza deste espólio. Há em todos os géneros, poesia, prosa…O plano é resgatar e reeditar o capital editorial da Ática, a primeira editora de Fernando Pessoa”, conta Jerónimo Pizarro, que acaba de coordenar com o italiano António Cardiello a publicação do inédito "Prosa de Álvaro de Campos". 

“O plano que temos é continuar a publicar o que Pessoa escreveu nos últimos cinco anos de vida. Isso significa dar a conhecer o muito que escreveu sobre esoterismo”, exemplifica.

Mas há mais. “Temos muitos textos de índole política, muito muito crítico da ditadura, do salazarismo, e que temos ainda que conhecer muito melhor os textos sociológicos e políticos de Fernando Pessoa entre 1930 a 1935”. 

Depois de já ter contribuído com oito volumes para a melhor compreensão da obra de Fernando Pessoa, Jerónimo Pizarro trabalha agora na edição de novos inéditos.

O espólio é uma espécie de puzzle do qual é preciso juntar as peças, e neste labirinto de criação, Pessoa nem sempre facilitou a vida a quem o estuda, conta Jerónimo Pizarro, que explica que o desafio a quem hoje estuda a obra não se coloca apenas em descobrir qual dos heterónimos está a escrever, mas também em decifrar a letra.

Guardado em mais de uma centena de caixas, o espólio de Fernando Pessoa está desde 2010 digitalizado e acessível, parcialmente, por internet através do site da Biblioteca Nacional.

Hoje esta ferramenta de trabalho facilita a investigação, até  porque no imenso espólio há folhas onde há ao mesmo tempo um aforismo de Álvaro de Campos ou um verso do Livro do Desassossego. Percorrer este mundo de Pessoa é um trabalho de detetive, já que escrevia em qualquer papel e em três línguas diferentes.

Jerónimo Pizarro teve a ajuda de outros pessoanos no trabalho de digitalização da biblioteca de Fernando Pessoa. Ao seu lado teve o argentino de ascendência italiana Patricio Ferreno; o italiano António Cardiello e canadiana Pauly Bothe, filha de um pai alemão e uma mãe irlandesa que trocou a vida no México por Portugal, há cinco anos, depois de ter aberto um livro de Fernando Pessoa . 
                               
O olhar de Pessoa cegou o italiano António Cardiello, que se cruzou com o poeta através das traduções de António Tabucchi e ganhou um novo amor. Está há oito anos em Portugal.

Há seis está Patrício Ferrero, que deu os primeiros passos no português através de Pessoa. Este pessoano diz ser mais fácil aprender uma língua do que entender o mundo de Fernando Pessoa.

Jerónimo, António, Pauly e Patrício juntam-se a outros nomes como o colombiano Jorge Uribe ou o americano Richard Zenith. Estrangeiros que são agora também portugueses por causa de Fernando Pessoa - o autor que não se esgota.

Na próxima semana pode ainda acrescentar imagem aos sons do espólio de Pessoa com a grande reportagem da Renascença V+.» in http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=30&did=70066

(Mariano Deidda - Fernando Pessoa, inédito)


(Fernado Pessoa - Poema do Menino Jesus - Alberto Caeiro) 




"Poema do Menino Jesus



Num meio-dia de fim de primavera


Eu tive um sonho como uma fotografia


Eu vi Jesus Cristo voltar à terra.


Veio pela encosta de um monte.


E era a eterna criança, o Deus que faltava.


Tornando-se outra vez menino,


A correr e a rolar pela relva


E a arrancar flores para deitar fora.


E a rir de modo a ouvir-se de longe.


Tinha fugido do céu.


Era nosso demais para fingir desegunda pessoa da Trindade.


Um dia, que Deus estava dormindo


e que o Espírito Santo andava a voar


Ele foi até a caixa dos milagres e roubou três.


Com o primeiro, ele fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.


Com o segundo, ele criou-se eternamente humano e menino.


E com o terceiro ele criou um Cristo e o deixou pregado numa cruz que serve de modelo às outras.


Depois ele fugiu para o sol


e desceu pelo primeiro raio que apanhou.


Hoje ele vive comigo na minha aldeia


e mora na minha casa em meio ao outeiro.


É uma criança bonita, de riso e natural.


Atira pedra aos burros.


Rouba a fruta dos pomares.


E foge a chorar e a gritar com os cães.


Nem sequer o deixaram ter pai e mãe


como as outras crianças.


Seu pai eram duas pessoas: um velho carpinteiro


e uma pomba estúpida, a única pomba feia do mundo.


E sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher, era uma mala em que ele tinha vindo do céu.


E queriam que justamente ele pregasse o amor e a justiça.


Ele é apenas humano,


limpa o nariz com o braço direito,


chapina as possas d'água;
colhe as flores, gosta delas,


esquece-as.


E porque sabe que elas não gostam
e que toda a gente acha graça,


ele corre atrás das raparigas
que carregam as bilhas na cabeça e levanta-lhes as sáias.


A mim, ele me ensinou tudo.


Ensinou-me a olhar para as coisas.


Aponta-me todas as belezas que há nas flores.


E mostra-me como as pedras são engraçadas


quando a gente as tem nas mãos e olha devagar para elas.


Ensinou-me a gostar dos reis e dos que não são reis.


E tem pena de ouvir falar das guerras e dos comércios.


Diz-me muito mal de Deus.


Diz que ele é um velho estúpido e doente.


Sempre a escarrar no chão e a dizer indecências.


E que a Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meias.


E o Espírito Santo coça-se com o bico;


empoleira nas cadeiras e suja-as.


Tudo no céu é tão estúpido como nas Igrejas.


Diz-me que Deus não percebe nada das coisas
que criou - do que duvido.


"Ele diz por exemplo que os seres cantam sua glória.


Mas os seres não cantam nada
se cantassem, seriam cantores.


Eles apenas existem e por isso são seres..."


Ele é o humano que é o natural.


Ele é o divino que sorri e que brinca.


E é por isso que eu sei com toda certeza que ele é o Menino Jesus verdadeiro.


E depois, cansado de dizer mal de Deus


ele adormece nos meus braços.


E eu o levo ao colo para minha casa.


Damo-nos tão bem na companhia de tudo


que nunca pensamos um no outro.


Mas vivemos juntos os dois


com um acordo íntimo,


como a mã0 direita e a esquerda.


Ao anoitecer, nós brincamos nas cinco pedrinhas do degrau da porta de casa.


Graves, como convêm a um deus e a um poeta.


É como se cada pedra fosse um universo


e fosse por isso um grande perigo deixá-la cair no chão.


Depois ele adormece.


E eu o deito na minha cama despindo-o lentamente


seguindo um ritual muito limpo, humano e materno até ele ficar nu.


E ele dorme dentro da minha alma.


Às vezes ele acorda de noite e brinca com os meus sonhos.


Vira uns de perna para o ar.


Põe uns encima dos outros.


E bate palmas sozinho sorrindo para o meu sono.


Quando eu morrer, filhinho, seja eu a criança, o mais pequeno.


Pega-me tu ao colo.


E leva-me para dentro da tua casa.


E deita-me na tua cama.


E conta-me histórias, caso eu acorde, para eu tornar a adormecer.


E dá-me os sonhos teus para eu brincar..."


(Alberto Caeiro)


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