«Em 1913, Pascoaes publicou «O Doido e a Morte» e mais uma conferência saudosista: «O Génio Português na sua expressão filosófica, poética e religiosa».
Começa também a rever e a corrigir a sua obra. Escrevia a Unamuno: «Eu anda agora a refazer a minha obra que foi escrita à pressa. De resto, agora sinto-me senhor da minha expressão.»
Em Setembro desse mesmo ano nasci eu. Três meses depois morreu meu Pai.
Assim, desta trágica maneira, me tornei habitante da Casa de Pascoaes. Minha Mãe regressa ao lar da sua infância e eu com ela. O Poeta apaixonou-se pelo bebé que eu era. Fui crescendo rodeada de amor e de carinho, rodeada de mil cuidados.
A propósito da morte de meu irmão e de meu Pai, Fernando Pessoa escreveu uma carta muito bonita, datada de 5 de Janeiro de 1914:
"Meu querido camarada
Há dias, num dos atalhos de uma conversa com Mário Beirão, soube que, já depois da perda de seu sobrinho, sofrera o meu querido Amigo a de seu cunhado. Talvez porque quase nunca leio jornais e porque vivo, sem necessidade de atenção a sensações exteriores, dedicado sem querer a presenciar-me apenas a mim-próprio, essa notícia só assim me chegou. Não sendo assim, já antes lhe haveria escrito para lhe manifestar o quanto a alta e quase religiosa simpatia, que me liga fraternalmente ao seu grande Espírito, faz com que me comova com a sua dor, redobrada agora. Eu creio que o meu Amigo tomará esta carta no sentido da sinceridade que ela tem e não olhará ao seu aspecto de condolência banal, que estas, por sinceras que sejam, inevitavelmente vestem. Os pêsames que esta carta lhe leva vem do mais alto que o social de mim.
Já que me encontro escrevendo-lhe, aproveito-o para lhe pedir desculpa de antes lhe não ter escrito, agradecendo a oferta de «O Doido e a Morte». Logo após receber este poema, comecei uma carta para si, em que cuidadosamente delineava, isto é, começava a delinear – o que para mim se afigurava ser, literáriamente, o valor da sua alma. Circunstâncias exteriores, mínimas salvo na sua repercussão em mim, deixaram-me, há mais que alguns meses, sempre sem acrescentar uma linha às poucas linhas que pensava. Adiei indefinidamente essa carta, que, ainda escrevi, e conto um dia poder terminar e expedir. Perdoe-me o que de indelicado e moroso resultou, perante a delicadeza da sua pronta oferta, do meu constante e desanimador desalento. Nenhuma culpa teve nessa demora o que de mim é consciente e superior a mim-próprio, e é com essa parte da minha alma que admiro e me enterneço com a sua obra. Não que eu julgue «O Doido e a Morte» uma das suas obras melhores. Mas tem, como tudo quanto o meu Amigo escreve, um sabor espiritual e Eterno. Naquelas figuras álgidas, onde o Mistério esfriou em Medalha, tendo de um lado a loucura e do outro a Morte, Deus é presente na sua nocturna forma de Pavor e Silêncio. A sombra de uma esfinge ao luar – eis o que é para mim esse poema. Bem sei que isto é pouco lúcido, mas o meu espírito bambo e desfiado e não suporta já o peso de um raciocínio ou de uma analogia. Digo-lhe tudo por imagens e metáforas, e estas são a moeda falsa da inteligência.
Tenho seguido com atenção o que o meu Amigo tem escrito. Há páginas das «Elegias» em que a Dor é quase divina. E há períodos do «Verbo Escuro» que são estatuetas do Mistério, encontradas em túmulos de réis que num impossível falaram talvez com Deus.
Releve-me que me aproveite de lhe estar escrevendo sobre outro e tão diverso assunto para enfim lhe agradecer «O Doido e a Morte», e lhe falar do que tem escrito. Se não lhe falasse disso agora, quem sabe quando lho diria? Passo a vida a adiar tudo – e para quando?
Ao menos ganho com isso o ser simbólico. O que é cada um de nós, na sua essência absoluta e divina, senão uma perfeição adiada para Deus?
Abraça-o comovidamente o seu sincero Amigo e eterno admirador.”
Fernando Pessoa, 5 de Janeiro de 1914» in Fotobiografia "Na Sombra de Pascoaes" de Maria José Teixeira de Vasconcelos