14/09/23

Arte Poesia - Natália Correia nos cem anos da sua morte, foi a maior Poetisa que conheci em vida, toda o seu viver foi fundado na Poesia...



«A defesa do poeta

Senhores juízes sou um poeta

um multipétalo uivo um defeito

e ando com uma camisa de vento

ao contrário do esqueleto.


Sou um vestíbulo do impossível um lápis

de armazenado espanto e por fim

com a paciência dos versos

espero viver dentro de mim.


Sou em código o azul de todos

(curtido couro de cicatrizes)

uma avaria cantante

na maquineta dos felizes.


Senhores banqueiros sois a cidade

o vosso enfarte serei

não há cidade sem o parque

do sono que vos roubei.


Senhores professores que pusestes

a prémio minha rara edição

de raptar-me em crianças que salvo

do incêndio da vossa lição.


Senhores tiranos que do baralho

de em pó volverdes sois os reis

dou um poeta jogo-me aos dados

ganho as paisagens que não vereis.


Senhores heróis até aos dentes

puro exercício de ninguém

minha cobardia é esperar-vos

umas estrofes mais além.


Senhores três quatro cinco e sete

que medo vos pôs em ordem?

que pavor fechou o leque

da vossa diferença enquanto homem?


Senhores juízes que não molhais

a pena na tinta da natureza

não apedrejeis meu pássaro

sem que ele cante minha defesa.


Sou um instantâneo das coisas

apanhadas em delito de paixão

a raiz quadrada da flor

que espalmais em apertos de mão.


Sou uma impudência a mesa posta

de um verso onde o possa escrever.

Ó subalimentados do sonho!

A poesia é para comer.


- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.


Natália Correia - "Defesa do Poeta"


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