«Deixem passar o homem invisível
Até ser detido, era raro Carlos Santos Silva deixar-se fotografar ao lado do seu amigo José Sócrates. Afinal, quem é o alegado testa de ferro do ex-primeiro-ministro, num alegado esquema de evasão fiscal e de branqueamento de capitais?
A casa branca, sobre o comprido e com janelas debruadas a castanho, domina o vale junto ao rio Zêzere. Abaixo dela, sempre a descer, há vinhas antigas, um muro de pedra e os telhados da aldeia, mas é para o verde que os olhos fogem, os campos férteis a fazerem concorrência ao castelo de Belmonte feito cartão-postal. Carlos já estava a um passo da universidade quando os pais compraram, a meias com uns tios, a Quinta do Pomar, na aldeia de Vale Formoso. Pertencera a um tal de Manuel Conde, dono da Opel nas cidades da Guarda e Covilhã, pai de filhas tão bonitas que os rapazes da terra iam à missa só para as verem. A propriedade tinha espaço para duas famílias, tinha pomares e uvas de mesa. E tinha, sobretudo, vista para os campos onde trabalharam várias gerações da família Santos Silva.
Era aqui que Carlos voltava sempre.
Estamos a cinco quilómetros de Belmonte e a 24 da Covilhã, já agora a 295 de Lisboa. Pela A23, o caminho desde a capital faz-se em menos de três horas, mas há trinta anos a viagem de comboio chegava a demorar um dia inteiro. Era cansativa, era cara, só se comprava bilhete nas férias. Por isso, em Vale Formoso já se sabia: os filhos de José Carloto dos Santos Silva, ambos a estudar em Lisboa, apareciam apenas no Natal, na Páscoa e no verão. No tempo frio, dava para ficarem no café da aldeia a jogar à lerpa, a contar anedotas. "Eles nunca tiveram complexos de lidar com pessoas mais pobres", diz Luís "Mesquita" Pais, 55 anos. Mas, em julho e agosto, até os meninos da cidade ajudavam durante a ceifa. "Trabalhávamos no duro, com os nossos pais, porque havia sempre palha para transportar", conta um primo do lado materno. "A ceifa chegava a durar um mês, e nós íamos muita vez até à Quinta Vale Verdinho, levar o lanche aos trabalhadores", conta um outro primo da mesma criação, Francisco Alberto Santos.
Os 'soufflés' de Dona Alexandrina
A Quinta Vale Verdinho ainda deve ser a maior do Sabugal. Pertence ao Estado, como pertenciam quase todas aquelas em que trabalhavam José Carloto, o irmão António e vários dos seus primos. Na região, os descendentes de Manuel José dos Santos são conhecidos como agricultores rendeiros e pequenos proprietários. Até à geração de Carlos, eram sempre tantos os filhos que, mesmo havendo algum património, chegava pouco a cada um. A partir dos anos cinquenta, quiseram-se os filhos só aos pares e fez-se o esforço de todos tirarem um curso superior - com algumas exceções, os Santos Silva são uma família de médicos e engenheiros. "Ganhámos o bichinho do trabalho", diz mais um primo.
As quintas eram pequenas povoações que albergavam patrões e empregados. Foi numa próxima de Belmonte, a Quinta da Várzea, que Carlos Manuel dos Santos Silva nasceu, a 9 de dezembro de 1958 (fez 56 anos na passada terça-feira), segundo filho de Alice e José. O irmão, António José, tinha quase cinco anos e cedo se tornou o seu protetor.
Quando chegou a hora de entrar na antiga primeira classe, já o pai se mudara para a Quinta dos Lamaçais, um pouco mais a sul, perto de Caria. A escola próxima era a da Borralheira, onde Carlos ia todos os dias a pé, como se usava. A mãe tinha mais que fazer na quinta. Se fosse preciso, Alice descascava cinquenta quilos de batatas num só dia, para alimentar os trabalhadores.
Carlos era o menino da mamã, mas, feita a antiga quarta classe, não deixou de ir, como o irmão, para o Colégio de S. José, na Guarda, um colégio interno, de padres, frequentado pelos filhos das famílias da região que podiam investir na educação da descendência. Tinha dez anos.
De início, o irmão fez-lhe companhia, mas não por muito tempo. Tozé estava quatro anos à frente e, no antigo sexto ano, saiu para o Liceu da Guarda, ficando hospedado na casa da Dona Alexandrina, uma senhora de Belmonte que era uma referência na Guarda. Arrendava quartos a estudantes e cozinhava tão bem que ainda hoje há quem sonhe com os seus soufflés.
Os dias no "Rocha", como era conhecido o colégio, eram mais leves do que na quinta. Os miúdos tinham algumas horas livres à tarde e ordem de soltura para descerem à cidade. Às quartas-feiras, Carlos encontrava-se invariavelmente com o seu primo Francisco Alberto, na Pastelaria Brisa, onde a senhora do balcão já sabia ao que iam: dois pastéis de nata e um café para cada, faz favor. Se não fosse aí, também havia a hipótese do Café Monteneve. "Ou eu passava pela livraria do Geninho, numa quelha perto da Rua do Comércio, a saber dele", conta o primo. "Aos 13 ou 14 anos, já andava de volta das revistas e dos jornais."
Nada o distraía dos estudos, escreva-se. Carlos não era marrão, "bastava-lhe ouvir as aulas para ter boas notas", recorda um colega. Só descansava nas férias. Aí, corria as festas todas das aldeias entre Belmonte e a Covilhã. Era bom bailarino?, tentamos saber. "Ia mais pelo convívio", respondem-nos uma e outra vez. E namoradas? "Digamos que sempre foi um bocado ingénuo", contorna um primo. Da juventude, aponta-se uma namorada: Paula Lourenço, filha do dono do Hotel Santa Eufémia, na Covilhã, hoje sua advogada.
Menino querido de Edgar Cardoso
Rapaz atinado, só esteve uma vez para dormir numa esquadra, na Guarda, onde tinha ido a um baile de finalistas do liceu, numas férias de Carnaval. Nevava tanto que ele e mais dois primos ainda lançaram a escada ao polícia de serviço, sem sorte. Não os deixou entrar. Tiveram de se aguentar até arranjarem uma boleia até Belmonte. "O homem achou-nos graça e pagou-nos o pequeno-almoço", ri-se hoje Francisco Alberto.
No liceu, para onde vai, trocando o internato pela casa da Dona Alexandrina, Carlos segue Ciências. E quando é para escolher o curso não quer menos do que Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico. O irmão também estava em Lisboa, a estudar Medicina, e morava com um primo, num quarto alugado na Alameda Afonso Henriques, junto à Fonte Luminosa. Já lhe desbravara os caminhos da capital e voltava ao seu papel de protetor.
Na universidade, Carlos revela uma inteligência acima da média. "Era muito bom em cálculo de estruturas", exemplifica uma colega. "E era um dos meninos queridos do Edgar Cardoso, que foi seu professor no quinto ano." Termina o curso em cinco anos e a Vale Formoso chegam ecos de que merecia ter ficado com média de 20 valores. "Andou em guerra no Técnico por isso", garante um vizinho.
É então que regressa à terra.
Tem os pais à sua espera e um lugar no Instituto Universitário da Beira Interior, na Covilhã. Os seus alunos de Análise Numérica ainda hoje se lembram dele, mais de trinta anos depois. Carlos Santos Silva era "um crânio", "um verdadeiro cromo", "falava à padre" e escrevia no quadro de uma maneira peculiar: sentado numa cadeira com rodízios, que fazia deslizar ao longo da ardósia, inclinando-se para trás para reler os passos. Ao fim de poucas aulas, já ganhara uma alcunha: "Colega" porque tratava os alunos por colegas. Demasiado "speedado" logo às primeiras horas da manhã para uns futuros engenheiros mais interessados em copos e noitadas, rapidamente procurou e encontrou um emprego na área da Engenharia Civil. Tecnicamente bem preparado, foi contratado pela Pina do Vale, uma empresa de construção de Belmonte, onde trabalhou dois ou três anos.
A variante de Castelo Branco, construída no início dos anos 80, teve a sua mão. Enquanto durou essa obra, Carlos ficou instalado num hotel ali perto, às expensas da empresa. Ao fim de semana ia a casa dos pais e aproveitava para lhe lavarem a roupa.
Estava ainda na Pina do Vale quando abriu um gabinete em Teixoso, aldeia a quinze quilómetros de Vale Formoso. Chamou-lhe Oficina dos Engenheiros e passava lá sábados e domingos, a trabalhar. Como o irmão (hoje, médico no Centro de Saúde) morava por cima, ficava muitas vezes a dormir em sua casa. O apartamento ainda é seu; está devoluto há alguns anos; a morada surge nos contratos de compra de andares de Maria Adelaide Carvalho Monteiro, mãe de José Sócrates.
Foi no início da sua carreira que Carlos conheceu Sócrates, então engenheiro fiscal na Câmara da Covilhã. Ele era um craque em cálculo de estruturas, já se escreveu, e o seu novo amigo mal conseguiria medir um terreno. Mas deram-se logo bem, diz quem assistiu ao início da amizade. Adoravam discutir um com o outro.
Carlos Santos Silva "é bom a pensar", sublinha um ex-autarca da região. "Quando fui vereador", conta Jorge Patrão, presidente da Parkurbis e secretário-geral da Rede de Judiarias (e irmão de Luís Patrão, ex-chefe de gabinete de José Sócrates), "recorri a ele mais do que uma vez porque, a nível criativo, é muito mais do que um engenheiro." Um exemplo? Em 2000, para marcar os 500 anos da Descoberta do Brasil, Jorge Patrão quis propor à Câmara algo que ficasse. Com a ajuda de Santos Silva, apresentou a ideia de uma cúpula de vidro, com um jardim típico da Bahia no seu interior, visitável. O esboço existe e foi feito pelo seu amigo mais do que engenheiro.
Quem o conheceu nos anos 80, percebeu que aquele "rapaz sempre muito ativo", "capaz de desbravar terreno", iria lançar-se sozinho em breve. O momento era o momento certo. Em politiquês: iniciava-se o grande ciclo da prevalência da construção civil no País. "Era já um indivíduo com ambições de vencer na vida, de sair do determinismo rural onde nasceu", diz um conterrâneo. "Tentou fazer a vida dele aqui, mas, à medida que as suas empresas cresceram, teve de ir para a capital, o centro dos negócios. Mais tarde, já com obras no estrangeiro, dizia-me: 'Estando em Lisboa, estou rapidamente em qualquer parte do mundo'."
Começou a viajar muito, logo ele que tinha "pavor" de andar de avião, recorda uma amiga dos seus tempos de juventude. "Eram muitos os seus medos: de ficar doente, de ter acidentes, de trovoadas." E teria azar. Quando estava na Pina do Vale, comprou um Lancia HF Turbo, uma máquina a sério na altura, e, uns meses depois, apanhou uma trovoada que lhe martelou o carro todo. Nesse dia, o granizo abriu buracos no telhado de uma fábrica de confeções da região.
Não se adivinhava este seu lado mais pessimista ao vê-lo em jantaradas, entre amigos, sempre alegre e a rir alto. Ao contrário do seu amigo José Sócrates, nunca teve receio de parecer um provinciano. "Honra lhe seja feita", nota um amigo da Covilhã, "manteve-se o mesmo homem simples."
'Vozinha de padre'
Quem começou a privar com Carlos Santos Silva em Lisboa ainda nota o seu sotaque beirão, "a sua vozinha de padre", parecida com uma imitação de Herman José. "Não se dá nada por ele. Tem ar de totó, mas não é parvo nenhum." Quem o conhece desde pequeno aposta que esse tipo de comentários não lhe faz mossa. "Sim, é das Beiras, e depois?" Gostariam era de vê-lo em liberdade e ilibado e já. "Quero dar-lhe um abraço quando ele sair, e quanto mais depressa, melhor", diz o primo Francisco Alberto.
As gentes de Vale Formoso ainda não se refizeram do choque de ter um herdeiro "de gente 100% boa" ser acusado de coisa tamanha. Peçam testemunhas abonatórias e surgirá à cabeça Arménio Marques Matias, 71 anos, 24 à frente da junta de freguesia, pelo PSD. "Não hesitaria um minuto porque ele é de uma família de muito trabalho." De Carlos, "jovem impecável", guarda uma imagem de retidão, do tempo em que era presidente: nunca faltou a umas eleições. "Exercia o seu dever de voto sempre. Se fosse preciso, deixava o carro ainda a trabalhar para vir aqui num instante."
Estamos à porta da junta, no centro da pequena aldeia. Era aqui, no rés do chão, atrás de uma janela de grades grossas, que o regedor enfiava os bêbados, os homens que causavam desacatos. Era aqui que Carlos Santos Silva votava, a umas ladeiras da casa dos pais. Até ao dia 20 de novembro, data em que foi detido no âmbito da Operação Marquês, só aqui estivera atrás de umas grades.» in http://visao.sapo.pt/deixem-passar-o-homem-invisivel=f804929
(Sócrates admite não saber quanto recebeu de Carlos Santos Silva)