«AMADEO DE SOUZA-CARDOSO E LUCIE PECETTO
Amadeo Ferreira de Souza-Cardoso nasceu em 1887 no lugar de Manhufe, concelho de Amarante. Filho de um abastado proprietário rural, vinicultor, José Emídio de Souza-Cardoso, que chegou a ser presidente da Câmara Municipal de Amarante, e de Emília Cândida Ferreira Cardoso, verdadeira matriarca de um lar autoritário e abastado o suficiente para dar aos filhos uma boa instrução.
Passou a infância no ambiente calmo e rural de Manhufe, na casa que abrigava uma numerosa família: para além dos pais, nove irmãos, tios e primos, coabitava com criados e pessoal externo contratado para os trabalhos da quinta.
Amadeo frequentou o liceu em Amarante, prosseguindo posteriormente os seus estudos em Coimbra. Mais tarde, em virtude do seu jeito para o desenho, o pai tentou convencê-lo a seguir arquitetura, persuadindo-o com a mais-valia do diploma e da carreira, embora Amadeo estivesse decidido a enveredar pela pintura.
Em 1905, cumprindo a vontade do pai, Amadeo matriculou-se na Escola de Belas-Artes de Lisboa num curso preparatório de arquitetura. Todavia, no ano seguinte, dececionado com o ensino artístico ministrado nesta instituição e com as piores impressões de Lisboa, tomou a resolução de prosseguir os estudos em Paris.
Nesta decisão contou com a forte influência e o apoio do tio Francisco, homem de grande cultura e sensibilidade artística e literária, muito viajado, com ligações à família real e à Igreja, que cultivava amizades no mundo da política, das letras, das artes e até do espetáculo. Terá sido ele a transmitir-lhe a atração por Paris, a incutir-lhe «o afeto das formas e das cores», e até, muito provavelmente, os ideais monárquicos e católicos perfilhados por Amadeo. Era, aliás, em casa do «Tio Chico», a Casa do Ribeiro, não muito longe da Casa de Manhufe, num ambiente de livros, rodeado de obras de arte, que Amadeo se sentia confortável, vindo aí a instalar o seu atelier nos últimos anos de vida.
Para trás deixou uma carta enviada à mãe: «Tenho uma grande dor de os deixar, a si, ao santo do Papá e a todos. Além disso, eu sou um espírito dramático e a minha alma representa sempre uma tragédia em que eu sou o único espectador. Contudo, no meio deste luto, eu vou rindo – rindo diabolicamente. Isto não quer dizer que me julgue infeliz – não. Se qualquer quisesse trocar a sua felicidade pela minha desgraça eu não trocava. Os meus destinos só estão bem comigo. Ou por eles triunfo ou por eles sou esmagado.»
Na sua sede de conhecimento, começou por frequentar ateliers preparatórios para o concurso de admissão ao curso parisiense de Belas-Artes, ainda com o objetivo de vir a frequentar arquitetura. No entanto, acabará por dedicar-se apenas ao seu sonho, influenciado pelo pintor espanhol Anglada Camarasa em cuja academia, a Academia Viti, virá a aperfeiçoar-se.
Nesta primeira fase fez caricaturas e algumas pinturas marcadas por aspetos naturalistas e impressionistas, aperfeiçoando a técnica que o médico e artista Manuel Laranjeira, já então, lhe reconhecera nas tertúlias no Café Chinez, em Espinho.
Em 1908 alugou um estúdio no nº 14 da Cité Falguière que se tornou um dos principais pontos de encontro de artistas portugueses em Paris. Eduardo Viana, Manuel Jardim, Manuel Bentes, Francisco Smith, José Pacheko, Emmerico Nunes, Alves Cardoso, Domingos Rebelo e Acácio Lino foram alguns dos que participaram nas noites de boémia regadas a vinho e enriquecidas com outras iguarias provenientes da abastada quinta de Manhufe.
Porém, esta existência mundana não o desvia da vertigem da produção. Exigente, meticuloso e até doentio, com um projeto rigoroso para cada tela, o artista, na ânsia da originalidade, desejava a todo o custo ultrapassar o vulgar. Ao jornal O Dia referiu numa entrevista: «Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos agora a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco...» E a outro jornal acrescentará: «Eu nem a mim mesmo me sigo... Tudo o que tenho feito é diferente do precedente e sempre mais perfeito.»
Nesse ano de 1908 conheceu Lucie Meynardi Pecetto, filha de uma italiana proprietária de uma pequena crèmerie no Boulevard de Montparnasse, com quem inicia uma relação amorosa. Lucie era uma jovem bonita, muito simpática, tímida, de grande sensibilidade e educação. Nascera em 1890, em França, e falava português em virtude de ter vivido com a mãe durante alguns anos no Brasil. As fotografias confirmam-lhe a beleza e as cartas que Amadeo lhe escreveu durante as vindas a casa ou em viagens pela Europa sugerem uma cumplicidade inteligente.
Em 1910 Amadeo fez uma estadia de alguns meses em Bruxelas onde se deixou seduzir pela pintura dos primitivos flamengos e, em 1911, expôs pela primeira vez os seus trabalhos no Salon des Indépendants, em Paris. Nessa época começou a aproximar-se progressivamente das vanguardas e de artistas como Constantin Brancusi, Gertrud Stein, Walter Pach, Max Jacob, Archipenko, Juan Gris, Robert e Sonia Delaunay, entre outros. Tornou-se também grande amigo do pintor italiano Amadeo Modigliani, com quem compartilhou um atelier e com quem chegou a realizar exposições.
No ano de 1912 publicou o álbum XX Dessins e expôs no Salon des Indépendants e no Salon d`Automne. Terá também ilustrado com paciência de beneditino, durante umas férias na Bretanha, o conto de Flaubert: La légende de Saint Julien l`Hospitalier.
No ano seguinte oito quadros seus foram escolhidos para integrar o Armony Show, figurando ao lado de obras de autores consagrados como Picasso, Brancusi ou Matisse, naquela que foi considerada a primeira grande exposição de arte moderna nos Estados Unidos. Nesse ano participou ainda no Herbstsalon da Galeria Der Sturm, em Berlim, onde virá a conhecer o pintor alemão Otto Freundlich.
Em 1914 partiu para Barcelona onde se encontrou com Gaudí. Passou por Madrid onde foi surpreendido pela guerra, motivo que o fará regressar a Portugal. Ainda exporá no London Salon e nas galerias de Munique, Hamburgo e Colónia, na Alemanha. Foi também em setembro desse ano que se casou, no Porto, com Lucie Pecetto. Só a partir da oficialização da relação, a jovem, a quem viam como a francesa «um pouco viva de mais para o que tinham por correto», será aceite pela família conservadora de Amadeo.
Com a Europa em guerra, vendo-se impossibilitado de voltar a Paris, Amadeo fez parte daquela que ficou conhecida como a Geração do Orpheu, juntamente com Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor, Almada, Raul Leal, a que se vieram juntar Luís de Montalvor, Armando Cortês Rodrigues, António Ferro, entre outros. Um grupo de jovens modernistas e futuristas que ousou romper com a tradição artística.
No ano de 1916 expôs no Porto e em Lisboa 114 obras com o título Abstracionismo. Num e noutro caso com novidade e escândalo. O seu trabalho foi criticado e ridicularizado ao ponto de chegarem a cuspir numa das telas e de se terem registado confrontos físicos entre críticos e defensores da arte moderna.
Amadeo chegou a receber tratamento no Hospital da Misericórdia, no Porto, vítima de agressão.
Almada Negreiros elogiou o seu trabalho fazendo publicar um artigo onde o considerava «a primeira descoberta de Portugal na Europa no século XX», chamando a atenção do público para o valor da sua obra: «amanhã, quando já souberes que o valor de Amadeo de Souza-Cardoso é o que eu te digo aqui, terás remorsos de não o teres sabido ontem».
Em 1918, com apenas 30 anos de idade, no auge da criação artística, o pintor morreu vítima da pneumónica, na casa de verão da família, em Espinho, para onde havia fugido ao vírus. Lucie faleceu em Paris, em 1987, com 96 anos, tendo sido sepultada no jazigo de Manhufe.
O trabalho de Amadeo só viria a ser aceite, compreendido e reconhecido após a morte do pintor, demorando algum tempo até que o seu nome ocupasse o devido lugar na história da pintura portuguesa. A amada viria a assumir um papel fundamental na divulgação da obra de Amadeo, nomeadamente, ao confiar à Fundação Calouste Gulbenkian grande parte do seu espólio.