«Pascoaes, os conflitos entre o real e o ideal...
Um pequeno trecho do livro de Maria José Teixeira de Vasconcelos, “Na Sombra de Pascoaes”, que foi sobrinha e Secretária de Teixeira de Pascoais pode ler-se o seguinte:
[..] No «Livro de memórias» descreve o seu doloroso encontro com o mundo da ciência:
«Lá vou, a caminho do liceu, pela rua escura e lajeada. Atravesso o Largo de S. Gonçalo e entro no antigo claustro apoiado em arcarias de granito. Ouve-se um barulho de rapazes e uma sineta: dlin, dlin, dlin! É o Zé do Hospital agarrado ao trágico baraço e a ralhar, de grandes barbas e aflitas e uma tempestade de rugas na testa espraiada até ao fraguedos do marão. Pobre velho de Deus, naquele inferno, entre caretas de demónios que não lhe permitem um único instante de sossego.
«Neste meio académico e ruidoso, eu era um ser inverosímil! Não sabia as lições, nem traçar a capa, nem trilhar as ruas da vila. O estudante metera-se em mim como um intruso. Nunca me conformei com ele, com essa capa e batina talhadas para outro corpo. Olhava-me desconfiado e tratava-me por senhor: «-Quem é? Não o conheço...
«Jamais esquecerei o momento em que um novo personagem quer substituir-se à nossa pessoa verdadeira. É o momento em que nos separámos da natureza e nos adaptámos à sociedade. Essa transição do natural para o artificial é uma tragédia em certos temperamentos enraizados no âmago da terra. É uma tragédia que vai até à morte.
«Somos originariamente uma criação da nossa fantasia, como os demónios e os deuses; e depois começamos a ser um produto do meio. Isto é, dos outros. No princípio é o reino da fantasia, o período da infância, a idade de oiro, à qual sucede a idade racional em que perdemos as asas de anjo e ficamos depenados. A mocidade é já uma queda. O primeiro contacto violento da realidade, a primeira desilusão vitoriosa marca o fim da idade de oiro e abre-nos o ciclo tormentoso da mocidade. É quando Caim mata Abel e corre pelo mundo a gritar os seus remorsos.
«A sombra de um anjo vem prender-se à nossa vida e uma sombra nos persegue, dia e noite – a sombra de um cadáver. Diante dos nossos olhos desencantados decaem pessoas e coisas. Este rochedo, afinal, é pedra, nada mais. Quem o diria? Já não atingimos a verdade superior, tocamos a triste realidade. Tocámo-la, assenhoriámo-nos dela e de nós próprios. A nossa personalidade inferiorizada, limitada, torna-se mais facilmente apropriável.
«Eu que fui um anjo sem o saber sou agora um demónio que se conhece»
Esta frase é uma revelação transcendente. Uma maravilha, um pensamento inspirado e incandescente que leva o Poeta ao encontro da Verdade e do rigor.
Ele é o mago, o visionário.
De resto, esta saudade magoada da infância é uma constante na sua obra.
Ele o diz como ninguém:
«Hei saudades de mim,
De outro que fui, menino
Que, uma vez, disse adeus
E nunca mais voltou...»
Mas o estudante desajustado chumbou. E, por ironia, chumbou a português.
O professor disse ao Pai: «Não sabe nem é capaz de saber!...» Mais tarde, este pobre homem veio a ser um grande admirador de pascoes e lastimava-se, confessando o seu erro...
Mas o futuro Poeta, fazendo um esforço de vontade, fez dois anos num só, na época seguinte... [..]
Pascoaes foi de facto um Escritor, Poeta e Filósofo panteísta. Neste pequeno, mas profícuo extrato de citações de Pascoaes, a que a autora brilhantemente aludiu, pode-se constatar a terrível luta interna que o Poeta sofreu, entre o ser natural e o ser social. Custou-lhe a adaptação à escola e à Vila de Amarante, pois a sua vida em Gatão foi de um constante enamoramento com as coisas simples, que o marcaram de forma indelével, estimulando a sua veia de Poeta e de Pensador.
Teixeira de Pascoaes chegou a chumbar à disciplina de Português... quem diria?... os espíritos geniais são quase sempre maus alunos, pois estão seguramente numa dimensão superior, o que faz com que atalhem por caminhos diferentes, nas aprendizagens, sendo que, muitas das vezes, não se adaptam a um ensino que procura o grupo e não o indivíduo.
Quando à sua vertente mística e panteísta, nada como ler um soneto que António Sérgio dedicou a Teixeira de Pascoaes, a quando da homenagem com que a Academia de Coimbra o consagrou, em Maio de 1951:
"Ao Teixeira de Pascoaes
As pessoas são nada, e as cousas são tudo:
Ah, se o pensaste assim, e se o disseste,
É que infundindo-lhe alma, às cousas deste
Um coração represo, arfante e mudo!
O penumbroso monte, o tronco mudo,
Vivem na névoa humana em que os puseste;
Tornaste irmão ansioso o vento agreste
E carinhosa a relva em seu veludo.
Bendito o canto teu, porque desperta
Essa visão de uma alma já liberta
Das cadeias da luta e da miséria.
E ao paraíso ao cabo regressada,
-Porque viu, ao fulgor da «”Vida Etérea”»,
Que as pessoas são tudo e as cousas são nada!"» in Fotobiografia "Na sombra de Pascoaes" de Maria José Teixeira de Vasconcelos.
As pessoas são nada, e as cousas são tudo:
Ah, se o pensaste assim, e se o disseste,
É que infundindo-lhe alma, às cousas deste
Um coração represo, arfante e mudo!
O penumbroso monte, o tronco mudo,
Vivem na névoa humana em que os puseste;
Tornaste irmão ansioso o vento agreste
E carinhosa a relva em seu veludo.
Bendito o canto teu, porque desperta
Essa visão de uma alma já liberta
Das cadeias da luta e da miséria.
E ao paraíso ao cabo regressada,
-Porque viu, ao fulgor da «”Vida Etérea”»,
Que as pessoas são tudo e as cousas são nada!"» in Fotobiografia "Na sombra de Pascoaes" de Maria José Teixeira de Vasconcelos.
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