«As crianças da casa iam às aulas ao Colégio do Padre Sertório, no Campo da Feira, em Amarante. Era uma caminhada penosa, nas frias manhãs de Inverno. E era também a perda de liberdade, que tanto apreciavam.
Pascoaes era um mau estudante, mas ficou distinto no exame de quarta classe. O avô deu-lhe de presente um relógio e uma corrente, o que muito alegrou o futuro poeta.
Então, a família abandonou de novo a casa de Pascoaes e regressou à casa da vila para que o filho mais velho pudesse frequentar o liceu. Durante alguns anos só passavam as férias em São João de Gatão. Pascoaes sofreu com esta transição. Tinha saudades da aldeia. Sentia-se desadaptado. Era: «criança que sonha, bisonho e melancólico precoce, enfermo de saudade.»
No «Livro de Memórias» descreve o seu doloroso encontro com o mundo da ciência:
«Lá vou, a caminho do liceu, pela rua escura e lajeada. Atravesso o Largo de S. Gonçalo e entro no antigo claustro apoiado em arcarias de granito. Ouve-se um barulho de rapazes e uma sineta: dlin, dlin, dlin! É o Zé do hospital agarrado ao trágico baraço e a ralhar, de grandes barbas brancas e aflitas e uma tempestade de rugas na testa espraiada até aos fraguedos do Marão. Pobre velho de Deus, naquele inferno, entre caretas de demónios que não lhe permitem um único instante de sossego.
«Neste meio académico e ruidoso, eu era um ser inverosímil! Não sabia as lições, nem traçar a capa, nem trilhar as ruas da vila. O estudante metera-se em mim como um intruso. Nunca me conformei com ele, com essa capa e batina talhadas para outro corpo. Olhava-me desconfiado e tratava-me por senhor.
«-Quem é? Não o conheço...
«Jamais esquecerei o momento em que um novo personagem quer substituir-se à nossa pessoa verdadeira. É o momento em que nos separámos da Natureza e nos adaptámos à sociedade. Essa transição do natural para o artificial é uma tragédia em certos temperamentos enraizados no âmago da terra. É uma tragédia que vai até à morte.
«Somos originariamente uma criação da nossa fantasia, como os demónios e os deuses; e depois começamos a ser um produto do meio. Isto é, dos outros. No princípio é o reino da fantasia, o período da infância, a idade do oiro, à qual sucede a idade racional em que perdemos as asas de anjo e ficamos depenados. A mocidade é já uma queda. O primeiro contacto violento da realidade, a primeira desilusão vitoriosa marca o fim da idade de oiro e abre-nos o ciclo tormentoso da mocidade. É quando Caim mata Abel e corre pelo mundo a gritar os seus remorsos.
«A sombra de um anjo vem prender-se à nossa vida e uma sombra que nos persegue, dia e noite - a sombra de um cadáver. Diante dos nossos olhos desencantados decaem pessoas e coisas. Este rochedo, afinal, é pedra, nada mais. Quem o diria? Já não atingimos a verdade superior, tocamos a triste realidade. Tocámo-la, assenhoríamo-nos dela e de nós próprios. A nossa personalidade inferiorizada, limitada, torna-se mais facilmente apropriável.
«Eu que fui um anjo sem saber sou agora um demónio que se conhece.»
Esta frase é uma revelação transcendente. Uma maravilha, um pensamento inspirado e incandescente que leva o Poeta ao encontro da Verdade e do rigor.
Ele é o mago, o visionário.
De resto, esta saudade magoada da infância é uma constante na sua obra.
Ele o diz como ninguém:
«Hei saudades de mim,
De outro que fui, menino
Que, uma vez, disse adeus
E nunca mais voltou...»
Mas o estudante desajustado chumbou. E, por ironia, chumbou a português.
O professor disse ao Pai: «Não sabe nem é capaz de saber!...» Mais tarde, este pobre homem veio a ser um grande admirador de Pascoaes e lastimava-se, confessando o seu erro...
Mas o futuro Poeta, fazendo um esforço de vontade, fez dois anos num só, na época seguinte.» in Fotobiografia "Na sombra de Pascoaes" de Maria José Teixeira de Vasconcelos