«Conto de Natal
O Jorge era um jovem adolescente, magro e pálido, que andava sempre num vaivém pelas tuas da cidade. De alguma forma, quase todos o conheciam, era impossível não se ter dado conta daquela figura esguia e apressada que andava sempre em grande azafama. Este jovem, não ia à escola desde o segundo ano de escolaridade, por isso a sua vida passava pelas ruas da cidade, onde pedia esmola às pessoas que passavam e fazia recados ao senhor do talho, às confeitarias e padarias, cafés e quando tinha dinheiro comprava balões para vender pelas ruas.
Seu pai era um toxicodependente e alcoólico, raramente estava em casa e, quando estava, era apenas para exigir dinheiro à Maria, sua mulher, e ao Jorge. Assim, este jovem sabia que se não tivesse coletado, pelo menos trinta euros por dia, ele e a sua mãe, levariam com um chorrilho de insultos e seriam brutalmente agredidos.
A sua mãe, a Maria, como era conhecida pela vizinhança era uma mulher de trinta e muitos anos, mas que estava precocemente envelhecida, pelo vício do álcool e pela doença terrível que o marido lhe passou, a SIDA. Já há muito tempo que não trabalhava, pois mal tinha forças para se levantar da cama. Alguns vizinhos tentaram ajudá-la, mas foram sempre impedidos pelas ameças violentas do marido, José, um homem brutalmente violento.
Deste modo, o dia a dia do Jorge passava por uma luta diária de conseguir trinta euros para o seu tumultuoso pai matar os seus vícios e alimentação da mãe e dele. A sua era o que menos o incomodava, comia muitas vezes pães sem nada e bebia um qualquer refrigerante. Mas, para a sua mãe, tinha que arranjar uma refeição quente diária, num dos muitos restaurantes, em que procurava algo de saboroso para combater a falta de apetite que a doença provocava na sua progenitora.
Quando o Jorge pedia esmola, dizia sempre que era para matar a fome da sua mãe doente. Nunca para ele ou para o seu pai. Era a sua mãe, o centro das suas preocupações. Não raras vezes, entrava nas igrejas da cidade e começava a rezar. Rezar como quem diz, pois era mais uma conversa direta com Deus, sem ladainhas, aliás como deveria ser sempre, digo eu. Questionava o grande Deus porque é que a vida da sua mãe tinha que ser assim. Porque é que Deus quis que a mãe tivesse que sofrer tanto. Numa dessas ocasiões uma senhora ouviu algumas dessas perguntas do Jorge e referiu o exemplo de Maria mãe de Cristo e o seu sofrimento para o confortar. Mas ele não se convenceu, e dizia, pelas ruas afora, eu não sou Cristo, a minha mãe é a Maria, mas não é a mãe de Jesus… porque me calhou amim, porque é que a minha mãe sofre tanto.
Estávamos próximos do Natal, a mãe quase inconsciente, sem remédios, a viverem numa barraca sem as minimas condições, até que uma pneumonia tomou conta dos últimos dias de vida daquela pobre de Deus. Inúmeras vezes, o Jorge passara noites a dormir nas cadeiras de espera das urgências dos hospitais da cidade, sempre que sua mãe para lá ia e ficava internada.
Jorge pressentia o fim de sua mãe, a sua debilidade era já mais do que evidente. Decidiu assim passar a última noite de Natal com a mãe. O pai veio como sempre à procura dos seus trinta euros e deixou-os sozinhos na noite de Natal. Jorge foi comprar uma ceia de Natal para os dois a um restaurante e para isso gastou todo o dinheiro que tinha amealhado, neste e nos dias anteriores. Poderia ir ao encontro dos “Voluntários da Boa Vontade”, que distribuem refeições quentes pela noite aos sem-abrigo, mas não. Sabia que o fim de sua mãe estava próximo e o Jorge de catorze anos, aprendeu a ser realista com a dureza da sua vida.
Passou a noite a dar a comida à sua mãe, com uma colher e muita delicadeza. Também lhe comprou doces de Natal e fizeram assim uma grande ceia, com vinho, champanhe, bolo-rei e tudo o mais. Quando acabaram a refeição, sentiu um sorriso nos lábios de sua mãe que por muito pouco expressivo que fosse ele entendeu. Depois, foi o suspiro final e Jorge ficou toda a noite agarrado ao corpo de sua mãe que, as poucos arrefecia e ele tentava acalentar com os seus carinhos e abraços.
Passaram anos e Jorge era agora um sem-abrigo daquela cidade, conhecido como o Cristo. Irónico, porque Cristo nasceu na noite de Natal e Jorge, acompanhou a sua mãe na sua lenta agonia da morte numa noite de Natal, mas era assim, tratava dela todos os dias, desde que se conhecia. Aos poucos e poucos foi ficando louco, pois as suas questões filosóficas, não tinham respostas claras e objetivas. Sempre que se questionava sobre a sua sorte e a da sua mãe, só era reconfortado pela alcunha que carinhosamente lhe atribuíram: o Cristo!
Jorge, agora já um homem com trinta e três anos de idade, marcado por uma vida de rua, de má alimentação, de poucos cuidados com a sua saúde e consigo próprio, de que nunca mais se conseguiu libertar desde a morte da sua progenitora. Apareceu morto por debaixo de uma ponte onde adormeceu alcoolizado, aos poucos refugiou-se também nas adições dos pais, num domingo de Páscoa, o Cristo daquela cidade. Morreu de saudade, de tristeza e de solidão.
Este deveria ser um conto feliz, mas o Natal é uma História grande e simples, triste sempre na perspetiva terrena, sublime na dimensão espiritual. Todos nós conhecemos mães e filhos que se reveem nesta ligação umbilical. Talvez seja esse o verdadeiro Espírito de Natal!»
"Poema de Natal
Jorge andava pelas ruas da cidade
Alguns reconheciam aquela figura pálida
Magro demais para a sua idade
E naquela tarde, quase noite, chuvosa e gélida
Toda a gente nas compras de Natal
Nos santuários da luz e da euforia da cor
Ninguém se apercebeu daquela hora fatal
Numa estória que só podia ser de amor
A mãe do Cristo morreu e ele também
Começou a apagar-se naquela tarde
Na noite da estrela que guiou reis a Belém
Jorge não suportou tamanha verdade
De viver para amar, cuidar e sofrer
Como o Jesus de Nazaré daquela cidade…"
Helder Barros, 22 de dezembro de 2018
Xico Buarque - "Minha História"
Ney Matogrosso - "Minha história"
"Minha História
Chico Buarque
Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente
(laiá, laiá, laiá, laiá)
Ele assim como veio partiu não se sabe prá onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido, cada dia mais curto
(laiá, laiá, laiá, laiá)
Quando enfim eu nasci, minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré
(laiá, laiá, laiá, laiá)
Minha mãe não tardou alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
E não sei bem se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor
(laiá, laiá, laiá, laiá)
Minha história e esse nome que ainda hoje carrego comigo
Quando vou de bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus
(laiá, laiá)
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus
(laiá, laiá, laiá, laiá)"