«UMA POESIA CORAJOSA
SobreViver é um livro que interroga, se interroga, nos interroga, e
que confronta a vida e a morte, num mundo onde nada morre, tudo se transforma. Miguel Almeida começa por se interrogar: “Como explicar a morte / E a falta de sentido da vida?”. A vida como supremo bem, a morte como fim de tudo, parece ser esta a ideia fundamental do autor, nas dúvidas e nas incertezas. E parece-me que nas certezas também, sobretudo porque, neste homem, existe um outro, o escritor, o poeta que quer saber o sentido da vida, saber do seu percurso enquanto “água que corre”. Provavelmente, em busca da “perspectiva total do todo” pode o poeta ser enganado, ludibriado por uma dimensão humana que ele próprio quer ultrapassar para romper limites, iniciar ou reiniciar viagens onde possa atingir e percorrer territórios que estejam para lá da emaranhada selva das perguntas.
O que ser? O que preferir?, sendo nós impotentes na escolha, como se ela estivesse já determinada, essa “sentença que nos espera, uma pena que a vida tem para cumprir”. E como se a vida fosse um sonho, a solução é fugir-lhe talvez através do amor, de um sonho alheio, tendo consciência de que a única certeza é também a única dúvida: “ Hoje estou aqui, / Na Terra / Mas amanhã /Quem o saberá?”.
Esta é uma obra que obedece a uma perspectiva e a um sentimento existencialistas. Necessariamente uma obra onde todas as angústias existenciais existem ou, diria melhor, permanecem, e onde o poeta para além de se/nos interrogar, dialoga consigo próprio:
“O que vais ser?
Não sei, sei lá!
Não o sabes, sabes lá?!
Não, não sei.
Não sabes, é claro que sabes
Não sabes, como ninguém o pode saber.”
E fica sem resposta, uma resposta que a si mesma se interroga:
“Quantos são os que quiseram ser o que são, / E quantos, sendo aquilo que agora são / Nunca foram aquilo que algum dia desejariam ser?”
Todo o texto do livro é um desfiar do novelo intrincado de perguntas que o poeta a si mesmo formula em nome da nossa existência, da nossa vida quotidiana,da nossa vontade, do nosso futuro. É, de certa maneira, não o Livro do Desassossego, mas um livro de desassossego. “E vives procurando / A dor dos outros, que sentida fazes tua /Num sonho alheio, por onde foges à vida”. Como um desengano, um enorme e doloroso desengano para o qual Miguel Almeida não se coíbe de fixar uma solução individualmente comprometida: “(…) por tal engano / Mais vale então morrer, /Que viver assim, / (N)a vida toda, (n)um (des)engano.”
Por outro lado, o autor, apesar da consciência de que numa vida passageira só quase há lugar para perguntas e mais perguntas inquietas e sem resposta (O Sentido da vida), encara essa mesma vida como uma luta permanente “para chegar a saber quem é”.
Sempre tive para mim que a grande poesia está inevitavelmente perto da filosofia, sendo por vezes muito difícil destrinçar a qual dos campos pertencem, exactamente, os versos. Eduardo Lourenço, perante a questão da existência de um pensamento filosófico português, sustenta que onde ele é mais evidente é no discurso dos poetas.
Miguel Almeida é um poeta-filósofo que faz do ponto de interrogação a sua arma, o motor para avançar no seu tempo, no nosso tempo, sempre em busca de respostas que sabe não existirem cabalmente, mas que, ao formular as suas perguntas, ao levantar as suas questões (e as nossas, entenda-se) mesmo deforma retórica, são uma forma de abanar um certo conformismo genético de todos nós, de colocar o leitor em luta com o poema ou, melhor dizendo, com as ideias,as inquietações e as dúvidas que este levanta e suscita.
Mais do que um livro de sentimento, SobreViveré um livro de pensamento. Logo, um livro inquieto e incómodo, não acomodado à escrita branca, tão em moda na poesia portuguesa dos últimos anos, aquele tipo de escrita da qual Giovanni Papini disse não ser poesia, mas casca e serradura de poesia. Não é um livro em que predomine a imagética ou a construção metafórica, um livro de “inspiração”. É um livro de “respiração”, de quem constrói uma poesia agarrada à vida, ao ser, ao estar, ao permanecer. Não se procurem as “lindas imagens” nas páginas de SobreViver. Essas, cabe-nos a nós, os seus leitores, criá-las em função dos desafios que o poeta nos coloca. Esta é uma poesia que, mais que sugerir, diz. E também deixa claro que Miguel Almeida é um poeta que faz muita falta no panorama da literatura portuguesa, é uma voz carregada de individualidade colectiva e, por isso, não encontro significativos paralelos em relação ao seu discurso. Já tinha ficado impressionado com o autor, quando há algum tempo adquiri e li de um fôlego o seu excelente Templo da Glória Literária, excepcional sobre todos os pontos de vista, mas um livro diferente na sua construção, da obra que estamos a analisar.
O autor revela-se, cada vez mais, um poeta de discurso sólido, criativo, empenhado perante a vida, com uma poesia que se pensa a si mesma e que pensa cada um de nós, entre os quais o poeta se encontra incluído. Poeta que não hesita em se (nos) perguntar, como uma criança grande: “E se fôssemos imortais e vivêssemos para sempre?”. Para além de retórica, a pergunta é traquina. Miguel Almeida sabe bem que “para viver há uma séria exigência: continuar a ser criança”.
O lirismo do poeta é muito contido, mais suave que doce, de uma emoção racional e nele, também, a palavra “útero” tem o tamanho do mundo. Dele, nasce o homem, mas também a liberdade e o conhecimento, e a liberdade do conhecimento, a escolha e a dúvida e, inevitavelmente, a poesia. A vida é mais plena fora do corpo, esse “corpo limitado pelos anos e pelas maleitas que ele traz, / um corpo que nos obriga a pensar outra vez no nosso corpo / agora de uma maneira menos existencial, mas mais essencial”. Para o poeta, como para quase todos nós, a vida é uma luta em que também o corpo participa arduamente(“Para nascer, para viver e para evitar ter que morrer”).
Miguel Almeida sente mais com o pensamento do que pensa com o sentimento e, na sua racionalidade, está a génese da sua poesia. Vê e observa com os “olhos da mente”.
Poeta assumidamente existencialista, através da sua poesia elaborou para a vida uma receita corajosa:
“Se não fores ousado e arrojado,
Se não assumires o risco de querer ser,
Um derrotado exemplar, para que serve a vida?
Se não for mais que uma oportunidade desperdiçada”.
Para o poeta, “a vida é como é, / Não é como deveria ser”. E “Todos somos escravos/ E senhores da vida”.
Correria o risco de poder escrever um texto demasiado longo para a função de analisar e apresentar esta obra, e sei que não o devo fazer por diversas razões, sobretudo porque, ao lê-la, o leitor fará igualmente o seu juízo que, ainda que diferente, poderá ser tão certo e tão legítimo quanto o meu. Quero apenas acrescentar o que poucas vezes se faz na abordagem introdutória a um texto literário: que vale a pena ler sem pressas este livro, mastigá-lo, degustá-lo, retirar dele o prazer de se confrontar com cada poema, dar-lhe luta, até. Porque a luta do leitor com o poema é uma luta consigo mesmo, que o obriga a soltar a coragem de se interrogar. E interrogar-se é criar “histórias de valentia ou cobardia”. Porque, como nos lembra o poeta, “Aqui, / Neste mundo,/ As pessoas / Já não são / Aquilo / Que fingem ser”.
SobreViver é uma grata possibilidade de leitura de uma escrita adulta, séria, desafiante. “Que nisso”, o poeta “procura ser excepcional”.
Joaquim Pessoa» in
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