Estamos já na atualidade. Com frequência, batem ainda hoje, à porta da Igreja de São Gonçalo, moças e mulheres a quem a sorte da vida não deu a companhia esperada. Pedem casamento, que tarda a acontecer, ou melhoria na relação, que corre o risco de se perder. O Santo lá está, no interior da sacristia. Do lado esquerdo de quem entra. Imagem muito antiga de madeira. Não abana a cabeça, nem faz qualquer obscenidade, mesmo às mãos mais atrevidas ou aos pensamentos mais ousados. Tem uma corda, que pende da cintura. Tornara-se, na altura das grandes procissões, uma preciosa corrente de ligação entre o taumaturgo e as mãos ávidas de muitas vidas em desespero. Bastaria puxar pela corda, como aquela mulher anónima do evangelho que tocara a orla do manto de Jesus, para sentir os efeitos da sua benéfica intercessão.·
6. A origem do título de «casamenteiro”·
As raízes do culto fálico ou da fecundidade e da fertilidade ligadas ao São Gonçalo não têm explicações concludentes.·
a) Explicação etnográfica
Os mais avisados na etnografia acham que a coincidência das festas de Janeiro (agora no dia 10, antigamente a 28) com os velhos cultos pagãos da fecundidade, fez o casamento das tradições. As Bodas de Caná, na Liturgia, obviamente ligadas ao casamento, celebradas em Janeiro, parecem dar-se bem com memórias das deusas das águas rebentadas. Cerca de quarenta inscrições votivas a divindades aquáticas foram encontradas na Hispânia, 30 delas na Lusitânia e quatro nos conventos de Braga. Também «São Gonçalo» tem a sua fonte dos milagres! E a sua festa.
Já São Martinho (séc.VI) no número 11 da sua Instrução Pastoral sobre superstições populares, denominada “De Correctione Rusticorum”, se refere às Paganalia, também celebradas habitualmente em fins de Janeiro em honra de Telure e de Ceres. A elas se associavam ritos de defesa contra animais daninhos às culturas, particularmente as formigas e os ratos. A prática apontada por Martinho terá porventura semelhanças com outras presentes no folclore nortenho relacionadas com bodos, pão-bento, foceiras, tabuleiros, etc., que ora foram proscritas (como as Maias, proibidas por D. João I, e os Bodos, proibidos por D. João II) ora foram consentidas sob licença (nas Ordenações régias), ora foram cristianizadas através de confrarias e associadas a dias de festa. A tentação de ligação destas tradições com os doces fálicos de São Gonçalo é grande.
b) A influência brasileira
Esta última interpretação precisa obviamente de maior rigor. Sobretudo quando, antes do século XVII-XVIII, se desconhecem vestígios destas tradições. A emigração de amarantinos para o Brasil e a aculturação da devoção ao jeito brejeiro desse povo terão facilitado a expansão do São Gonçalo, «casamenteiro». É sobre este ponto que nos queremos deter agora mais em pormenor
Nas origenso casamenteiro
Dispersas pelo nordeste do Brasil encontram-se numerosas localidades cujos topónimos, coincidentes com terras portuguesas reflectem a presença de emigrados reinóis, gente de vária proveniência e profissão, que aí amanharam lar e lhes deram por nome o da povoação donde eram, local ou regionalmente, oriundos. Questão de saudosismo de identidade e orgulho das raízes terrunhas distantes, do outro lado do mar atlântico, que, separando, unia. É-se, assim, arrastado a conjecturar acerca do motivo desta panóplia de onomásticos, pois se não vê razão mais plausível para explicar o facto.
Foram os estados do Maranhão e Baía, com Piauí confinante e pobre, superfícies de infinda dimensão, desafio gigante ao desbravamento colonizador a partir da era quinhentista. O resultado ainda hoje se vê, no litoral e no interior, na sementeira de municípios, crismados com topónimos lusos, e, como marca metropolitana da piedade cristã, de oragos de templos e confrarias.
Crença e culto espelham-se à saciedade na iconografia devota e na liturgia festiva, a evidenciar com eloquência essa transplantação de fé católica ida da mãe pátria.
Denominadas Amarante, duas terras se perfilam não demasiado distantes entre si: uma, mais a norte do estado de Piauí, espaço geográfico comprido e estreito, a separar o Pará do Maranhão, confinado pelo mar no topo setentrional e pelo da Baía a sul; outra, Amarante de ltiúba, neste último, cerca de uma centena de quilómetros a norte de Feira de Santana, em que a criação de gado é a actividade económica dominante. A rede hidrográfica, em toda a região, dispõe de rios caudalosos que fertilizam solos e abrem vias à circulação de pessoas e bens. Durante séculos, desaguaram em Salvador levas migratórias sobretudo minhotas. Há mais de seis dezenas de anos, o etnógrafo brasileiro João da Silva Campos informava que, como resultado de suas pesquisas «em livros de enterramentos e assentos de irmãos da Misericórdia, tombos e Conventos de Ordens Terceiras e Irmandades, testamentos e diversos assuntos, dos arquivos oficiais e particulares da Baía», a grande maioria de emigrados para a capital do estado baiano era natural do Porto, Viana do Castelo, Arcos-de-Valdevez, Guimarães e Ponte de Lima».
E, porque o povo crente recorre a todo o momento aos intercessores celestes, muitos dos quais passaram também agruras sem conta em sua vida mortal, logo baptizaram essa grande porta de acolhimento de Baía de Todos os Santos e por lá espalharam cultos, rituais e crendices, testemunho vivo de cultura, religiosidade e saudosismo.
No burgo e Recôncavo - área de cento e vinte quilómetros de terrenos irrigados pelos inúmeros fios de água que correm no Lagamar, como aliás no restante Brasil, S. Gonçalo de Amarante é particularmente venerado.
Com seu nome, há no Rio Grande do Sul um rio de margens verdejantes, salpicadas de arvoredo, e no Rio de Janeiro consagraram-lhe um município.
No Recife e Maranhão, os festejos do Santo, casamenteiro das moças de antiquíssima tradição, são dos mais populares, havendo nas igrejas, à semelhança do que acontecia em Portugal, os bailes de S. Gonçalo, carregados de erotismo, a merecer a censura e condenação da hierarquia eclesiástica. Nas noventa e uma freguesias da vasta arquidiocese de Baia - cujo número não coincidia com o aro da capitania que só contava setenta e duas - havia, no início do século XIX, três que o tinham por orago (padroeiro): a Vila de S. Francisco, a de Campos e Jesus Maria e a de Pé do Banco. Criada no último quartel do século XVI, S. Gonçalo de Patituba, em pleno Recôncavo, havia já sido extinta.
Quase a dobrar a era de novecentos, mais duas surgiram, a juntar às cento e onze existentes, vindo a tomar o nome do Taumaturgo (milagreiro): S. Gonçalo de Amarante de ltiúba e S. Gonçalo e Senhor do Bonfim de Estima'.
Na voragem do tempo desapareceu a sua capela do Convento Imperial de Santa Clara do Desterro, tão carinhosamente cuidada pelas religiosas e onde, cada ano, entre os festejos ao padroeiro havia irreverências condenáveis e outeiros, danças e namoros lascivos.
E, se na ilha de ltaparica se incrusta um lugarejo com a capelinha de S. Gonçalo, três fazendas, que vieram a fundir-se na actual área urbana, assim se denominaram: a ocupada pelo cemitério, a sita para as bandas do matadouro do Retiro, nas terras do Marquesado de Niza; e a implantada ao entrar na cidade no ameno arrabalde do Rio Vermelho, ao alto da Paciência, cujos últimos proprietários, por legado pio, foram os monges beneditino. Engenhos se conhecem dois: o de S. Gonçalo do Poço, no Recôncavo, e o do município de Santo Amaro. Na igrejinha do Rio Vermelho, votada ao abandono desde inícios do século XIX, com rija pompa, de que ficou fama, veneravam-no os pescadores, respeitando-se as costumadas tradições: a das pastorinhas a esmolar e o passeio da bandeira com a efígie do santo pintada por entre alas de tambores. Às festas de S. Gonçalo no templo do Bonfim assistiam o governador e a nobreza, atingindo os folguedos excessos naturais, alimentados pelos desregramentos dos devotos vindos de toda a parte para cumprir promessas e associarem-se à folia.
Na actualidade: o violeiro
Do Brasil, destacamos, sem dúvida, a famosa «Dança de São Gonçalo», embora proveniente, segundo parece, de antiga tradição portuguesa. Câmara Cascudo, no seu Dicionário folclórico, relata os festejos que em Amarante, na Sé do Porto, e em muitas outras localidades de Portugal se realizavam em honra ao popular santo casamenteiro.
Esta dança conhece variantes, conforme o lugar. Geralmente a dança é realizada dentro de casa ou em local coberto, onde se arma um altar com imagem de São Gonçalo e outros de devoção. Dela temos testemunho, pelo menos, na Bahia, Minas, Paraíba, Pernambuco, Ceará, São Paulo.
A Dança a São Gonçalo é organizada em pagamento de promessa a São Gonçalo. O promesseiro organiza a função. Existe em quase todos os estados brasileiros, com algumas variantes. A dança é desenvolvida de frente para este altar. A dança é dividida em partes chamadas "volta", cujo número varia entre 5, 7, 9 e 21. Entre cada "volta" há interrupção e todos aproveitam para se servir das iguarias oferecidas pelo promesseiro: café com biscoitos, bolos, pão com carne e bolachas são as mais frequentes.
As "voltas" são desenvolvidas com os violeiros cantando, a duas vozes, enquanto os dançadores, sapateando na fileira em ritmo sincopado, dirigem-se em dupla até o altar, beijam o santo, fazem saudação e saem sem dar as costas para o altar, ocupando os últimos lugares de suas fileiras. Cada volta pode demorar de 40 minutos a 2 ou 3 horas, dependendo do número de dançadores.
Na última "volta" - em São Paulo chamada "Cajuru" - forma-se uma roda onde o promesseiro encerra a dança carregando a imagem do santo, retirada do altar. Se houver mais de um pagador de promessa e mais de uma imagem, todos os promesseiros carregam simultaneamente as imagens; no caso de haver apenas uma imagem para vários promesseiros, o santo pode ir passando de mão em mão.
O violeiro, que é o chefe da dança, coloca-se ao lado esquerdo, e no direito seu primeiro auxiliar, chamado de "contrato" (corruptela de contraalto). Por trás do mestre de dança, fica outro auxiliar, designado "tipi", sem viola, o mesmo acontecendo com o segundo violeiro. Os dançarinos postam-se atrás dos dois elementos corais, em duas filas, guardadas as devidas distâncias. O mestre fica à testa da fila esquerda.
A fila direita, encabeçada pelo violeiro, desloca-se sempre obedecendo os sinais dados com a cabeça pelo mestre. O violeiro e seus auxiliares avançam até o altar. Os dançarinos então escolhem seus pares e vão se colocando em fila. Quando a postos, o mestre da dança ordena aos folgazões que se ajoelhem e rezem.
As violas desencadeiam um ritmo lascivo, em compasso de verdadeiro lundu. A dança começa e o entusiasmo apossa-se dos participantes. As mulheres movimentam-se, remexendo as ancas, saltando em louvor de São Gonçalo. Os homens acompanham os rebolados sensuais com interesse. Puxam fileiras, dão umbigadas, lembrando as famosa saturnais romanas. A promiscuidade do vice-rei, de parceria com os cavalheiros de sua casa, com monges negros, anulando todas as diferenças sociais, em ostensiva provocação dos sexos, levou a igreja católica a proibir esta dança.
Não é por acaso que São Gonçalo é representando no Brasil, com a viola. Tivemos notícia, ainda há pouco, de um CD de homenagem a todos os violeiros, no Brasil, precisamente com o nome de São Gonçalo, da autoria de Paulo Freire. O tema é inspirado na dança de São Gonçalo, da cidade de São Francisco, Minas Gerais. No CD há uma gravação desta dança da região do Bonito, em que o guia foi mestre Salu. Não temos à mão o som, mas temos o tom do culto contemporâneo nestas quadras de Roberto Correia dirigidas ao cantor:
Nos pés, cravados na pele, espinhos de flor
o instinto, no enleio da dança, vencido na dor
nas mãos, o toque do violeiro cantador
tiranas, canções de gesta, cantigas de amor.
Viva viva São Gonçalo
reviva São Gonçalim
na dança do entrançado
jornada do trancelim.
São Gonçalo violeiro
é tão triste o meu viver
eu aqui vivo banzeiro
sem ninguém pra me querer.
São Gonçalo do Amarante
seja lá de onde for
tire logo este quebrante
que é pr'eu ter um novo amor.
c) Explicação global (antropológica)
Se esta elucidação não deixa de ser interessante, ela pode cair no risco de ser marginal. Há mesmo quem tenha inventado a teoria de que «casamenteiro das velhas» viria de uma degeneração do linguajar popular que se referiria a «casamenteiro das de Ovelha», localidade próxima de Amarante. Cremos que não será preciso ir tão longe para perceber a graça desses elementos fálicos, matrimoniais ou afectivos, lúdicos ou musicais, no culto a São Gonçalo. A popularidade de um santo facilita o acesso do povo. E, nessa familiaridade com o patrono, pode-se chegar à ousada aventura de lhe confiar até as coisas mais íntimas e as mais atrevidas. É normal que só a alguém de muita confiança e proximidade se confiem causas tão difíceis como «vergonhosas» ao olho curioso e esperto da comunidade. Ainda hoje, não raro, coram com acanhamento aquelas que perguntam «onde está o São Gonçalo “da corda”»? Mas ninguém pode esquecer que Santo António também tem os seus casamentos e outros santos as suas travessuras... Ora o que passa é que se dá uma transferência afectiva da vida dos devotos, que pretende não tornar-se iguais aos santos, mas tornar os santos iguais a si...
Tem graça estas graças. Porque a partilha sincera do nosso mundo interior nem sempre encontra interlocutor à altura. As promessas e as cantigas, os doces e as “puxadelas” na corda, serão sempre melhores do que fixações doentias expiadas no divã do psiquiatra. De resto, ainda que em tempos idos, a Igreja tivesse de “corrigir desvios”, como o da dança à volta do túmulo, hoje vai percebendo que também aqui não se deve separar o que Deus uniu: o afecto e a fé, a religião e a cultura, o sentimento e a sua expressão mais que variada.
Manifestações actuais do culto
Está já implícita na análise feita, a actualidade do culto a São Gonçalo, no Brasil. Bastaria um segundo de navegação internâutica em busca de «São Gonçalo», para entrar num mar de expressões cultuais e culturais, das quais destacamos a dança a São Gonçalo. Façamos agora uma breve apresentação do culto, nas suas manifestações portuguesas e actuais: