«Vivia em Celorico de Basto um lindo rapaz que, por vocação, se fez frade. Chamava-se Bernardo de Vasconcelos. Era um parente afastado. Morreu muito cedo. Frei Bernardo da Anunciada foi o nome religioso do poeta beneditino. Deixou poemas místicos de grande beleza e elevação.
Escrevia a Pascoaes cartas muito bonitas e comoventes, dizendo-lhe que rezava e comungava por ele. Nunca se encontraram. Mas Pascoaes tinha por ele uma grande estima e admiração, como o prova esta carta lindíssima, datada de Amarante, a 11 de Setembro de 1924:
Meu Querido Poeta
À sua carta, recebida ontem, não é com palavras que se responde, mas o meu silêncio, embora contivesse os mais altos sentimentos que a minha alma lhe dedica, poderia ser interpretado como estúpida e fria indiferença. Eis a razão porque respondo com palavras, isto e', servindo-me de uma forma material, duma faculdade do meu corpo. De resto, o corpo (permita-me que lho diga) tem sido bastante caluniado! O pobre triste! 0 mísero servo da alma (quando não seja o templo de Deus vivo, como afirma S. Paulo) sujeito a todas as dores físicas tremendas: a dor de ser queimado, esmagado, retalhado, asfixiado! A tudo se submete o pobre triste, para que a alma, na sua passagem pelo mundo, possa agir e revelar-se! É claro que a acção é, frequentes vezes, maléfica, mas também é boa, de quando em quando. Que havemos de dizer dos braços que salvam um afogado, da mão que oferece uma esmola, dos lábios que pronunciam uma oração? Eu adoro a alma e não desprezo o corpo, e o pão que o alimenta, e o sol que o aquece e alumia. A contemplação do céu não me absorve por completo. Os meus olhos repousam encantados também na beleza das coisas naturais. Encontrar essa harmonia entre o mundo e o céu tem sido a minha perpétua ansiedade. Encontrá-la-ei? Não, pobre de mim! O mundo está cheio de sombras e de crimes, e o céu tem muito de vago e inatingível que me tortura! Eis o meu drama, querido Poeta... 0 drama de um ser inferior, quase vegetal, que criou raízes na terra como as árvores e, como as árvores, ergue as ramagens para o céu, hirtas e desfolhadas, num desespero! Eu bem sei que a mais nobre atitude de uma alma é atingir uma verdade divina ou a Verdade, e entregar-se a ela, por completo, repousar nela para sempre. É o seu caso e o do Ângelo e o de um ou outro eleito do Senhor.
Mas, ai de mim! Eu não nasci para repousar! Vim cumprir uma pena. Debato-me nas trevas, ansioso de claridade, e pressinto, para além de tudo, as mãos do Destino que me impelem não sei para onde... O Destino de Deus? Deus, creio bem; a vontade inexorável de Deus que me faz viver e padecer.
Vejo que há almas como a sua que já cumpriram a pena e se libertam, e há outras almas ainda prisioneiras, almas de tragédia e expiação, que esperam a liberdade. Esperam e desesperam! Gritam, enquanto as almas irmãs da sua se evolam para Deus em orações. Porquê? Mas todos nós obedecemos! Viver é obedecer. Uns obedecem a Deus; outros...
A sua carta iluminada de divina caridade tocou-me no mais íntimo do coração. É a carta de um Santo escrita a um pobre diabo; um raio de luz celeste despedida sobre uma triste sombra consciente da sua existência ilusória.
Ergo os olhos para si, para o seu espírito liberto. Vejo o esplendor que o transfigura, mas vejo-o desaparecer, ao longe, nas distâncias do Infinito. E, ao mesmo tempo que o admiro e amo e venero, murmuram num tom de imensa tristeza aos meus ouvidos aquelas palavras da sua carta:
«Que a minha vida seja um verso branco
Que eu não saiba escrever.»
Isto é sublime, na verdade! Mas para mim encerra uma tragédia, a máxima tragédia do silêncio. Perdoe-me o que vou dizer-lhe:
Eu preferia ouvir-lhe aquele verso...
As suas orações por mim, o seu amor e piedade pela minha humanidade feita de dor e imperfeição, ouvi-las-ei religiosamente, neste remoto escuro em que me aflijo e me consumo, e serão como estrelas cravadas num ermo espaço lutuoso.
Se a bem-aventurança que Deus lhe concedeu baixar, um dia, à minha alma, ela virá por intermédio das suas orações. Será um milagre do seu amor e da sua piedade. Vejo-o afastar-se e desaparecer, entre as quatro paredes de uma cela... Neste momento supremo da sua vida, atrevo-me a fazer-lhe um pedido a quem tudo pretende conceder-me. Peço-lhe que não reze somente. Não se amorta-lhe naquele verso incriado e sublime! Cante, erga a sua voz nos seus versos, que eles hão-de ser as suas mais perfeitas orações. Creia bem que Deus ouviu com mais amor os versos de Frei Agostinho do que as suas Avé Marias e Padre Nossos... O canto divino redime-nos e redime os outros. A oração e' mais uma conversa particular entre nós e a Divindade.
Isole do mundo a sua existência, feche-se numa cela, mas derrame nas almas aflitas cá de fora o bálsamo poético da sua alma libertada.
Creia na gratidão, no amor e admiração que lhe dedica este triste penitente prisioneiro, espreitando pelas grades do cárcere, a noite muda e tenebrosa à espera de ver raiar a nova luz...
Teixeira de Pascoaes» in Fotobiografia "Na Sombra de Pascoaes" de Maria José Teixeira de Vasconcelos.