Na primeira (P23, segundo o catálogo), como que numa experiência impressionista, captura uma atmosfera de fim de tarde, quando o sol radiante e anguloso, tinta toda a paisagem de amarelos e laranjas; uma “luz intensa, desta terra cheia de coisas pitorescas.” (Souza-Cardoso, 1910b). Pinceladas mais rápidas, numa tela pequena e portátil, onde o pintor dedica tempo a definir apenas a torre acastelada, como marca identitária principal da casa; o resto do casario tosco, e a vegetação muitas vezes uma simples pincelada grossa.
A segunda (P44) é já uma experiência completamente diferente. Amadeo geometriza a Casa de Manhufe que se avista “ao longe no alto de uma das montanhas do sopé do Marão (…) com o seu tipo acastelado, com o ar de quem vigia as montanhas aos pés” (Souza-Cardoso, 1910b) e a sua paisagem circundante. As linhas que passam os seus limites naturais, as formas destorcidas, o arvoredo altamente estilizado, conferem à obra uma identidade muito própria. Não há, também, como não mencionar uma das mais fantásticas obras de Amadeo: «a Cosinha da Casa de Manhufe» (P50, 1913). Do mesmo período da P44, a incessante geometrização das formas, a exploração dos vários planos, sagram a entrada definitiva de Amadeo pelo cubismo. Ainda em Manhufe, não muito longe, fica a Casa do Ribeiro, onde o pai de Amadeo lhe constrói um atelier. Também foi pintada (P45), em 1913, no mesmo estilo de P50.
Fica assim completa a tríade mais intensa da formação (portuguesa, entenda-se) de Amadeo de Souza-Cardoso: a casa onde nasceu, a que o viu ser batizado, e aquela onde trabalhou e tanto produziu. Nesse sentido, o pintor faz, numa das cartas que envia a Lucie, a confissão: “não imaginas o efeito que me tem produzido a minha terra desta vez” (Souza-Cardoso, 1910a). Hoje, felizmente, não precisamos de imaginar esse efeito: está patente no seu corpo de obra. A presença das suas raízes, em Manhufe, Mancelos, Amarante, Espinho, e a cor e luzes portuguesas, será a base a partir da qual Amadeo desenvolverá a sua estética.
Ou então, somos apenas nós, portugueses, a tentar reclamar a nossa presença e importância para um percurso magnífico de um dos melhores artistas modernistas do século XX. A realidade é que já muito foi dito sobre Amadeo, sua vida e obra, mas havendo ainda tanto por se descobrir e por se discutir, a relevância é incontestável.
Bibliografia
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Souza-Cardoso, A. (1910a). Carta de Amadeo a Lucie, 1910. Colecção espólio de Amadeo de Souza-Cardoso. Lisboa: Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (Cota BA ASC 12/15). Disponível em: https://goo.gl/tL9JUH (Acedido em 23/03/2018).