«O Queirós tratorista
Estávamos
nos primórdios da década de setenta em Fregim, uma freguesia em que circulavam
muitos carros de bois, em que a tração animal era o forte, numa agricultura
muito pouco mecanizada, até então. Surgia de quando em vez na freguesia o
Queirós de Vila Meã, com o seu trator cor de laranja, um Fiat de linhas
direitas, mais moderno que o David Brown branco, do Carlinhos de Macieira,
único trator que se conhecia em Fregim, a par com o do Sr. Reis da Mosteira,
empregado agrícola na Casa da Pousada, do Sr. Abreu da Tabopan.
E
nós, os miúdos da aldeia, maravilhados com a prodigiosa máquina que tanto veio
facilitar a vida dura dos lavradores, imaginávamos corridas de pequenos
tratores que fazíamos de madeira, a mimetizar os ditos reais. De vez em quando,
quando tínhamos um aniversário, só pedíamos tratores como prendas, tal a nossa
obsessão com aquelas máquinas automóveis com ou sem reboque, que passaram a
fazer parte da paisagem bucólica dos campos e do nosso minifúndio. Os carros de
bois e demais alfaias agrícolas puxadas pela força animal, que ainda conheci,
passaram a ser substituídos nos trabalhos agrícolas ligados, principalmente, ás
vindimas, ao transporte de mato, de lenha, de milho e de centeio, às lavras e
fresas de terras, as lavoiras como então se dizia.
O
barulho do trator passou a fazer parte das aldeias e durante as décadas de oitenta
e noventa, nas freguesias, era um frenesim diário, um vai e vem de tratores que
se espalharam por todo o lado, aumentando a rentabilidade do trabalho e
reduzindo a sua dureza. E viam-se assim carros de mato, mas rebocados por
tratores, pipas de vinho, transporte de uvas, de pasto para o gado, de madeira,
tudo atrelado a essa máquina versátil que percorria campos e montes de forma
versátil e simples, o seu poder de tração tornava-se cada vez mais potente.
Certo
é que morreu muita gente a conduzir tratores, quer por falta de prática para
dominar uma máquina tão poderosa, quer por facilitismo e falta de segurança na
sua utilização. No inicio, poucos desses veículos traziam o atual arco de
segurança de que são munidos, a cabine de proteção e cintos de segurança e como
facilmente capotavam, fruto da orografia das nossas propriedades agrícolas, com
leiras e leirinhas em degrau e montes em autênticas montanhas sinuosas e com
grandes pedras escondidas pelo mato. Por essas alturas, as motorizadas mataram
e entreveram muitos jovens, também trouxeram um ruído característico aos nossos
dias e os tratores levaram muita gente, mais velha. A motorização das aldeias
foi um fenómeno violento nessas duas vertentes: motorizadas e tratores, que
ceifaram muitas vidas e entravarem muita gente, principalmente, jovens. A
condução e manobra destas máquinas sob o efeito do álcool foi outro fator que
propiciou acidentes brutais e estúpidos…
Mas
o impacto na produção foi sentido de forma alucinante. Não era pouco comum,
ouvir tratores a lavrarem e a fresarem de noite, a transportarem uvas para as
adegas desde o nascer do dia, até altas horas da madrugada. Embora o seu número
tivesse crescido rapidamente, o trator não conseguia dar resposta à procura
crescente pelos seus serviços e por via de isso, trabalhavam de dia e de noite.
A agricultura foi paulatinamente precisando de menos mão de obra, pois a
mecanização que esta máquina e suas alfaias aportaram, foi um fator de mudança
demasiado importante, ao nível do insumo e custos de produção, não
negligenciáveis.
E
era ver aqueles corajosos homens de dia e de noite, com o sol quente, ou com
chuva fria e neve, a passarem sem cabine, com um guarda-chuva numa mão e a
outra no volante, até arrepiava só de os ver assim. Claro que muitos sofreram
grandes constipações, gripes, pneumonias que vieram a pagar mais tarde, pois o
corpo só aguenta até um certo ponto, morrendo em consequência de doenças
respiratórias e de complicações cardíacas. Aqui lembro também, o Amigo
Magalhães da Capela que trabalhou para nós muitas vezes, mormente, no apoio a
vindimas, sendo uma simpatia de pessoa, sempre de bom trato, de riso fácil,
histriónico, onde ele chegava, a alegria vinha junta. Que Deus o proteja nas
lavras dos campos do Céu.
Alguns
dos meninos que brincavam comigo, não resistiram ao fascínio que a máquina lhes
provocou e são hoje tratoristas, embora o trabalho já não exista em tanta
quantidade, pois com o advento dos fundos comunitários orientados para a
agricultura, muitos produtores passaram a ter tratores recheados de alfaias,
que permitem a realização autónoma de inúmeras tarefas, lá vai havendo mais
trabalho para todos, embora em menor escala que, naqueles inovadores anos das
décadas de setenta até finais da década de noventa. Até já racham lenha para
aquecimento doméstico e estão sempre a aparecer novas alfaias, para darem
resposta a novos desafios na produção agrícola.
Por
aquela altura, o Queirós de Vila Meã saiu rapidamente do anonimato, da sua vida
simples de prestador de serviços agrícolas, para ser um dos mais requisitados e
afamados tratoristas da margem direita do Tâmega, em Amarante, pois teve que
colocar telefone fixo, o que era então um luxo, recebendo a sua esposa, inúmeros
telefonemas e gerindo uma agenda de compromissos laborais difíceis de
controlar. O Queirós era de tal maneira o preferido por todos, pelas suas
virtuosas habilidades com o trator e respetivas alfaias que, quando faltava ou
se atrasava aos seus serviços, havia uma sensação de vazio nas freguesias que
se notava na face dos seus fregueses, pela tristeza da sua ausência. Foi um
reinado pequeno, pois Queirós já não era muito novo e rapidamente ficou bem na
vida, deixando o seu mester que o tornou famoso e muito solicitado na região.
Esta é a história de um herói improvável, e de uma mudança irreversível do
panorama agrícola local, de que me recordo com muita saudade, pois adorava ver
aqueles bravos heróis a manobrar com audácia e destreza as suas máquinas
motorizadas…» in http://birdmagazine.blogspot.pt/2016/10/queiros-o-tratorista.html
António Variações - "Erva Daninha ao alastrar"
António Variações - "Erva Daninha ao alastrar"
"Erva Daninha a Alastrar
António Variações
Só eu sei que sou terra
Terra agreste por lavrar
Silvestre monte maninho
Amora fruto sem tratar
Só eu sei que sou pedra
Sou pedra dura de talhar
Sou joga pedrada em aro
Calhau sem forma de engastar
A interpretação é o que quiserem dar
Não tenho jeito p'ra regatear
Também não sei se eu a quero aumentar
Porque eu não sei
Porque eu não sei se me quero polir
Também não sei se me quero limar
Também não sei se quero fugir
Deste animal, deste animal
Também não sei se me quero polir
Também não sei se me quero limar
Também não sei se quero fugir
Deste animal, que anda a procurar
Só eu sei que sou erva
Erva daninha alastrar
Joio trovisco ameaça
Nas ervas doces de enjoar
Só eu sei que sou barro
Difícil de se moldar
Argila com cimento e saibro
Nem qualquer sabe trabalhar
Em moldes feitos não me sei criar
Em formas feitas podem-se quebrar
Também não sei se me quero formar
Porque eu não sei
Porque eu não sei se me quero polir
Também não sei se me quero limar
Também não sei se quero fugir
Deste animal, deste animal
Também não sei se me quero polir
Também não sei se me quero limar
Também não sei se quero fugir
Deste animal, que anda a procurar"