«MARIA DA RIBEIRA
Estávamos no Portugal pós-revolucionário e ainda do furor das utopias românticas de um Abril que trouxe muitas esperanças vãs, e, adiadas por um período militarista conhecido como PREC. Apesar do militarismo e euforia que percorriam os centros urbanos, na Freguesia de Fregim, Amarante, os dias passavam calmos, as águas da sua ribeira arrastavam-se com a volúpia dos dias azuis e atlânticos, de uma primavera verde e pastosa de maio de 2015, um caudal raso de verão, o grilar constante dos pequenos insetos do campo e o colorido exuberante que as flores silvestres conferiam aos campos e bordas da aldeia.
José e Maria, caseiros de uma quinta ribeirinha, em Fregim, tiveram três filhos machos e foram sempre dedicados ao seu trabalho, numa rotina diária de muito labor e de muitas canseiras, num ofício de sol a sol, imparável na intensidade, dureza e implacável na sua obrigação. Possuíam touros, vacas leiteiras, porcos, ovelhas, galinhas, patos, perus e coelhos, que ajudavam no sustento da casa, nas tarefas diárias, para comerciar localmente entre os vizinhos e nas feiras semanais da localidade de Amarante.
Maria era uma mulher de vida, com uma enxada nas mãos trabalhava como um homem, não raras vezes, calcava os carros de mato com os pés descalços, como andava sempre ou quase sempre, pois nos dias de missa e de ir à feira levava umas tradicionais tamancas e a roupa de sair. Os filhos desde novos foram habituados a trabalhar no campo, com a mesma tempera dos pais. Dois deles, nem a quarta classe chegaram a fazer, pois o chamamento dos campos foi sempre maior.
José era um homem de poucas palavras, mas de trato afável para os vizinhos e visitantes e andava sempre com Maria. Os dois eram inseparáveis na sua faina diária, tendo sempre que fazer. Os dias sucediam-se sempre iguais, entre sol, chuva, vento e frio, sendo o trabalho para eles sempre garantido. José pouco falador mas sempre disponível para ajudar os seus vizinhos, contrastava com a personalidade de Maria, mais faladora e de riso fácil; na maior parte das vezes lançava, um qualquer dito popular, para rematar as conversas, sendo o seu preferido o seguinte: “chuva no campo e sol na eira é o que o lavrador precisa…”
O filho mais novo, tendo nascido já fora das previsões deles, era muito naturalmente o mais mimado e, igualmente, o mais poupado às tarefas árduas do dia a dia da quinta. Apesar disso, era um moço forte e entroncado que, aguentava todo o tipo de trabalho e de desafio que os irmãos e amigos, lhe lançavam. Nas vindimas, andava orgulhosamente, com a escada de 26 banzos, precisando da ajuda dos irmãos, para mudar a escada de sítio, nos salgueiros que ladeavam a ribeira. E era vê-lo a subir e a descer as escadas, com cestos carregados de uvas. Estes bardos ribeirinhos davam cestos e cestos de uvas, bem douradas pelo sol, pois estavam bem lá no alto dos salgueiros a muitos metros de altura, tentando beijar o sol dourado e quente.
Numa vindima de um lavrador vizinho a quem foram dar “tornas”, um colega do José desequilibrou-se ao esticar-se para apanhar uvas, numa dessas escadas enormes, caindo de seguida e ficando numa cadeira de rodas até ao final da sua vida, que ficou mais curta, em vista do desgosto e da falta de capacidades físicas para alimentar a sua família. O pouco tempo que viveu, após o acidente, foi de apelo constante à caridade dos amigos, no limite da sua dignidade individual.
Maria era uma mulher destemida, no dia em que lhe vieram abrir as águas da poça de rega de consortes, ela fez-se de forquilha para o intrépido homem que a enfrentou, por pouco não o vazando de um lado ao outro. Estava no dia e na hora deles regarem, não podiam deixar que lhe roubassem aquele direito secular, dando a vida, se necessário fosse, para tal. Eram os últimos tempos em que a terra se confundia com as pessoas, em que a força telúrica estava no sangue de cada um… a terra era ao mesmo tempo sustento do corpo e fazia parte do sagrado, num clima de panteísmo místico, na medida em que era respeitada como tal, nos seus ciclos de produção e de devoção.
Maria e a sua família viviam pelos ritmos naturais da terra e pelas luas. Jamais semeavam algo ou realizavam alguma tarefa agrícola, sem saberem se o ciclo da Lua era o mais favorável, para tal. José nasceu e morreu naquela quinta, ninguém se atreveria a tirá-lo do único lugar em que foi feliz, apesar de trabalhar como um desalmado ao sabor dos elementos que ele poderia prever, mas jamais controlar.
Às tardes, depois de tirarem o esquiço à pipa de vinho tinto da casa, e de beberem como quem mama, José e Maria iam cortar erva para os campos férteis e com o regadio das levadas da Ribeira, cantavam músicas ao desafio, com a pronúncia e o arreganho minhotos, para matar o tempo e esquecer o cansaço do trabalho. Normalmente, a Maria dava o mote: “O meu amor chama-se Zé; sem ele eu não sei viver; para o ver eu iria a pé; bem longe só para o ver…”. O José então entrava a cantar, em jeito de resposta, com traços de humor e de ironia muito próprios: “Oh Maria eu estou aqui; abre os olhos se me queres ver; ao teu lado bem perto de ti; sem ti não podia viver…”
Entretanto, o peso da idade começou a fazer-se sentir e o casal foi ficando mais velho, com os problemas atinentes a essa circunstância, começando a perspetivar uma morte pacífica no sítio que sempre adoraram, até por não conhecerem outro. Os anos de muito trabalho e de excesso de exposição aos elementos naturais tiveram o seu preço, que se paga com juros elevadíssimos na saúde de cada pessoa, de forma inexorável, a partir de certa idade.
Inopinadamente, a Junta Autónoma das Estradas decidiu fazer um acesso a uma autoestrada, atravessando a quinta ribeirinha que foi expropriada para tal. O casal que, entretanto, já vivia sozinho, pois os seus filhos foram crescendo, casando e saindo de casa, foi intimado a deixar a casa e a quinta. Está bom de ver que, embora tivessem ido viver em condições melhores, num apartamento da cidade de Amarante, o fim das suas vidas foi antecipado drasticamente, falecendo, pouco tempo depois, com saudades do seu sítio e das suas coisas.
De premeio, o filho mais novo, sempre o mais protegido, estourou as poupanças de uma vida toda de trabalho dos pais, em mulheres, bebida e em jogo, logo que teve acesso à conta bancária deles, o que afligiu de forma contundente e acutilante o coração dos seus pais. As coisas quando tendem a ficar más, podem mesmo ficar muito piores e assim foi na Quinta da Ribeira! Quem disse que não somos feito de terra que nos forma e nos enforma?...» in http://birdmagazine.blogspot.pt/