torturara-o durante a vida. Impressionava-o o preto e era incapaz de ir a um enterro.
Detestava ver alguém de luto.
Lembro-me de que há já bastantes anos, em Lisboa, saiu, depois de ter lamentado a cor do vestido da Mãe, e voltou pouco depois, radiante, com um embrulho que lhe entregou.
«Aí tem. Pode andar de escuro sem andar toda de negro!»
Era uma seda azul-marinho com pintinhas brancas. Ela, comovida e feliz, dilatou o brilho do seu olhar vivíssimo. Adoravam-se.
Quando a Mãe o precedeu, há alguns meses, ele gritou: «É um mundo que se acaba!» Na noite seguinte, quis ainda vê-la, despedir-se. Hesitou muito incerto da sua coragem. Por fim, decidiu-se. E ao deparar com aquele rosto apagado ergueu os braços em repetidas exclamações de espanto. Não esperava encontrar uma tal expressão de forca e serenidade! Ficou mais calmo, mais confortado.
Ela acabara aceitando o facto com a maior simplicidade: «Já não posso viver mais!»
Agora, o filho seguiu-a polo mesmo caminho desconhecido. Mas partiu sem qualquer comentário, sem uma palavra. Com a mesma serenidade, mas maior indiferença ainda.
A sua morte fora como ele sonhara:
«Como seria bom assim morrer...
Morrer como a paisagem desfalece.»
Não temia a morte. Detestava o seu aparatoso cenário. Negros crepes em pomposa procissão isso é que o impressionava. Mas a morte, a grande libertadora, fora deusa da sua inspiração. Sempre a cantara em versos feitos da mesma eternidade:
«0 nosso corpo é estrela,
Que vai arrefecendo
E escurecendo,
Para que nele surja uma outra luz mais bela,
A Luz espiritual.
É preciso baixar à negra sepultura,
Para que a humana e pobre criatura
Alcance o eterno amor.
É preciso sofrer o último estertor,
Chorar a lágrima final…!»
Mas não chorou nenhuma lágrima, nem teve qualquer estertor. Apagou-se. O
seu corpo adormeceu profundamente criando silêncio, sombra e vazio, enquanto o
seu espírito, em aceso clarão, desvenda novos mistérios.
Ao adoecer teve logo a antevisão da morte. Desânimo e desapego era o que nos
mostrava o seu rosto macerado, os gestos lassos. Trabalhava ainda, à pressa, como quem tem medo de não chegar ao fim!
No queria tratar-se. Não confiava na medicina e temia o diagnóstico. Ao doutor Mendonça Monteiro, que insistia em lhe trazer um médico, respondeu: «Não me
fale nisso. A morte leva-nos, mas não diz quando. O médico marca logo o dia e
põe-nos de oratório. Os médicos falam sempre em coisas tenebrosas.» Era o dia dos
Mortos - 2 de Novembro -, dia do seu aniversário.
Foi perdendo as forças. Não saía do quarto. Levantava-se apenas para escrever os
pensamentos que lhe roubavam o sono:
«Vozes da noite, falai... falai...
Que não pode dormir quem vos conhece.»
Durante quinze dias no conseguiu adormecer. Revia os seus inéditos. Corrigia
o «Bailado» e o «S. Paulo» para nova edição.
Atribuía o seu mal a mau funcionamento do aparelho digestivo: estava, há tempos, só a caldos. Enfraquecia cada vez mais.
O médico chegou, por fim, disfarçadamente, como quem vem cumprimentar. O
doente compreendeu e aceitou.
Entremeando o exame clínico com uma curiosa troca de impressões literárias, o
doutor Fernando Magano venceu. Mas o doente reagiu violentamente quando o médico falou na necessidade de passar uns dias no Porto e fazer análises: «Não saio daqui. Só quando isso corresponder a um íntimo desejo. Por enquanto não.»
Quando o doutor Magano saiu ele comentou: «É um homem superior, e tem uma coisa simpática! Não fixa os olhos no doente. Repara em tudo, até nas paredes.» O médico olhara atentamente a estranha decoração do quarto: pequeninos quadros de maravilhosas tonalidades, pintados pelo Poeta, velhas facturas, santos de madeira, flores emurchecidas e tesouras de poda, guarneciam as paredes.
Durante oito dias o doente sentiu-se um pouco mais animado. O tónico receitado dava-lhe algumas forças. Mas a febre agitava-o. Custava-lhe erguer-se sozinho.
Queria que sua irmã Miquelina o ajudasse: «As mulheres têm uma espantosa leveza de mãos!» in Fotobiografia "Na Sombra de Pascoaes" de Maria José Teixeira de Vasconcelos